"A gente passa fome e ainda pode pegar o vírus por míseros R$ 6”: a vida dos entregadores de app
Por Vladimir Maluf (@vladmaluf)
Entrei em cinco grupos de WhatsApp que reúnem entregadores de aplicativos -- como Rappi, iFood e Uber Eats. Apresentei-me como jornalista e avisei que estava ali para escrever sobre o que os juntou nesses chats. Eles fazem, principalmente, desabafos sobre as condições de trabalho e dividem dicas para resolver problemas cotidianos. Preservando as identidades, relato histórias narradas por eles e mostro as insatisfações mais frequentes. São centenas de casos que complicam a vida desses trabalhadores, observadas por mim em pouco mais de duas semanas, entre o final de março e a primeira quinzena de abril de 2020. Os nomes usados aqui são fictícios. As reclamações que escolhi são as que mais apareceram nas conversas, ilustradas por alguns episódios contados em papos coletivos ou em particular. Somados, os grupos reúnem cerca de 600 membros, a maioria de São Paulo (SP) e todos homens.
O primeiro dos grupos, quando entrei, reunia pouco mais de 300 membros. É o mais ativo. Foi criado para organizar uma paralisação, no final de março, em São Paulo. Eles queriam, principalmente, que a remuneração oferecida pelas empresas fosse "mais justa" e melhores condições de trabalho -- especialmente, durante a pandemia. Mas eles desistiram da manifestação: "A gente já é malvisto, imagina se parar agora, no meio do corona", diz Jorge, preocupado com a repercussão negativa de um possível ato. "Vamos esperar a pandemia passar e, aí, a gente para. As pessoas vão dar mais valor para nós depois disso tudo", acredita Leonardo. Com o adiamento, alguns membros deixaram o grupo, que, agora, tem pouco mais de 200 integrantes. A ideia de uma paralisação está suspensa, mas não descartada.
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Política, memes, fake news e coronavoucher
Outros temas entram nos grupos: política, inevitavelmente, esquenta as discussões. Há defensores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e outra banda formada por arrependidos de votar no atual presidente -- somada a eleitores que se identificam mais com as políticas dos partidos de esquerda. Há os saudosos de Lula (PT): "No tempo dele, o motoboy era uma pequena empresa ou tinha carteira assinada numa pizzaria. A gente ganhava bem mais", conta Marco. "Ele rouba, mas faz", concorda Lucas. O bordão, no passado, foi amplamente associado a dois políticos brasileiros: primeiro, Ademar de Barros (1901-1969) e, mais tarde, Paulo Maluf, 88 -- hoje, em prisão domiciliar.
A frase usada para se referir a Lula coloca mais fogo na conversa e traz mais uma onda de críticas a Bolsonaro. "Lula é ladrão? Bolsonaro ficou rico como? Em trinta anos não fez nada pelo Brasil", questiona Sérgio. Ele se refere ao fato de Bolsonaro ter tido dois projetos de lei aprovados no Congresso durante seus 27 anos como deputado federal, entre 1991 a 2018. Alguns membros pedem que a discussão não atrapalhe o objetivo do grupo: conquistar melhorias para a classe.
Memes, figurinhas, vídeos de humor e imagens de mulheres de biquíni aliviam a tensão. No grupo, também se fala do auxílio que o governo pagará aos autônomos, batizado informalmente de "coronavoucher". Alguns levam informações sobre como sacar o benefício, outros pedem ajuda para dar entrada. Houve, também, quem enviasse links falsos -- e foram banidos do grupo -- e um usuário que postou uma imagem que chamava de "vagabundo" quem solicitava o auxílio.
Rodam fake news (às vezes, desmentidas) sobre coronavírus e cloroquina -- "A Globo tem a cura da covid-19", diz um entregador --, pedidos de socorro para espalhar fotos de motos roubadas, na tentativa de recuperá-las, dicas para para localizar os bairros onde estão tendo mais entregas no horário e compartilhamento de ações que ajudam esses trabalhadores. "Rapa [rapaziada], tem marmitex por R$ 2 no centro para entregador", escreve Mauro, dando o nome e endereço do restaurante que está oferecendo as refeições na capital paulista.
Entregadores reclamam de bloqueios sem chance de defesa
Um tema muito recorrente: trabalhadores bloqueados pelos apps. Entregadores alegam que, a qualquer momento -- e sem chance de defesa --, podem perder o sustento. "Eles [as empresas de entrega] bloqueiam a gente sem motivo e você fica sem direito a uma explicação. Tem muito pai de família que depende dessa renda e fica sem nada", conta Igor, usuário bloqueado acusado de não entregar um pedido solicitado. "[Para as empresas] o cliente sempre tem razão. Às vezes, o cara [cliente] dá o golpe para comer o lanche de graça. Diz que não foi entregue e o aplicativo devolve o dinheiro. Ele fica com a comida e não paga, quem paga é o motoboy."
Também por isso, eles querem acesso mais fácil aos suportes das empresas -- segundo eles, as mensagens enviadas são frequentemente ignoradas ou a demora para uma resposta é grande, atrapalhando ou impossibilitando entregas e, muitas vezes, gerando dívidas para os trabalhadores com as empresas de entrega. "Uma vez, levei uma refeição que seria paga na entrega. Cheguei lá e o morador não estava. Tentei falar com ele por quase uma hora e não consegui. O suporte me orientou a descartar o produto. Descartei, mas, depois, o cliente reclamou. Fiquei devendo o valor do pedido para o aplicativo e ainda fui permanentemente bloqueado. Não posso mais trabalhar com esse app", fala Arnaldo.
Problemas menores também são difíceis de serem reportados para os suportes, segundo vários entregadores. A dificuldade faz com que eles percam muito tempo em um frete, impedindo que peguem novos pedidos e ganhem o suficiente para compensar a jornada. Murilo diz: "Já passei fome. A gente está trabalhando, mas não tem condições de comer na rua. Sabe o que é carregar comida nas costas enquanto está morrendo de fome?"
Riscos, com ou sem coronavírus
Caetano, entregador de Salvador (BA), conta que já foi bloqueado por recusar fazer uma entrega. "Não aceitei um pedido para uma zona perigosa da cidade e me bloquearam. Às vezes, a gente simplesmente não quer fazer uma rota, e o aplicativo vai lá e te bloqueia. Eles não estão na nossa pele, não sabem o que é estar em cima de uma moto, correr o risco de sofrer um acidente, perder a vida", diz. "A gente não tem vínculo nenhum com a empresa e eles ainda querem fazer exigência", complementa. A recusa, segundo vários motoboys, causa três problemas: punição, e os pedidos não aparecem mais para os entregadores por um período; bloqueios temporários e bloqueios permanentes.
Trabalhadores conversam, também, sobre as campanhas para as pessoas ficarem em casa. Julgam importantes, mas sentem que elas ignoram a existência deles -- como se o delivery fosse a materialização de uma entrega na porta de casa, evitando que as pessoas se coloquem em risco. "Quem bate palma para nós?", pergunta Hugo. Ele se refere aos movimentos de aplaudir, das janelas, os médicos que estão trabalhando durante a pandemia. "Claro que eles são importantes, mas e o entregador? Se a gente parar de trabalhar, de se arriscar, muitos vão ter que sair de casa e podem ficar doentes", diz ele.
O temor de ser contaminado pelo coronavírus e colocar a família em risco é grande. O contato com pessoas diferentes, diariamente, é enorme: além dos clientes, porteiros, recepcionistas, eles falam com funcionários de lojas, restaurantes, mercados, postos de combustível... Nos últimos dias de março, um membro compartilhou o link de uma notícia que anunciava que uma empresa de entregas distribuía máscaras e álcool gel para os entregadores. Dezenas de participantes riem logo em seguida: nenhum membro do grupo, cerca de 300, sequer soube da proposta.
No dia 8 de abril, novamente, surge um comunicado de distribuição gratuita de álcool em gel para motoqueiros, pelo iFood. Em algumas horas, cinco pessoas confirmaram ter retirado em um endereço escolhido pela plataforma um pote de álcool gel de 500 ml, em São Paulo. Nenhum motoqueiro de fora da capital paulista relatou ter tido esse benefício. "Tem cliente que é 'ponta firme' e dá um potinho de álcool em gel quando você vai levar pedido", comenta Fabricio. "Eu fui buscar o álcool e ainda ganhei pela corrida. O iFood me pagou R$ 5,60 para ir até lá", explica Fábio.
Baixas taxas, gastos altos
Todos os entregadores que se manifestaram sobre pagamentos nos quatro grupos reclamaram dos valores recebidos para entregas. Silvano me diz: "Os aplicativos querem que a gente faça percurso de oito quilômetros por sete reais. Todos eles não prestam. Não estão sendo honestos. A gente que se lasque. Eles pensam: "Quer? Quer… Não quer? Tem quem queira'."
Mais usuários no grupo concordam e contam histórias semelhantes. "Às vezes, 'toca' uma compra de R$ 500, R$ 700, a gente ganha uma merreca e ainda tem que entrar no mercado, procurar os produtos, ficar na fila do caixa", reclama Arthur, um entregador que só trabalha com Rappi -- único dos três apps que trabalha neste modelo, em que o entregador faz a compra.
Se a compra não couber na moto, ele precisa chamar um carro de app, abastecê-lo, acompanhar o motorista até a casa do cliente e realizar a entrega. Se estiver de bicicleta, fica mais difícil. "Já tive que pedir para o supermercado guardar minha bike. Eles não queriam deixar e eu larguei ela lá, arriscando ser roubado. Fui levar a compra e voltei a pé para buscá-la", relata Milton, um entregador que usa bicicleta em São Paulo para fazer delivery.
"Por conta dessa pandemia que está rolando aí, a gente pode pegar uma doença por míseros seis reais. Aí o cara vai, contrai uma doença dessa aí, contamina toda a família… Como faz? Estou indignado. O entregador é que se 'lenha'. Em todos os ângulos, é ele que se 'lenha'", fala Caetano, o trabalhador que atua em Salvador. Ele afirma que as empresas cobram "mundos e fundos" do cliente e não repassam quase nada ao trabalhador. "As taxas são muito baixas. Já 'tocou' pedido para retirar um pedido a 7 km de distância de onde eu estava e entregar a mais de 17 km, por R$ 15. Não compensa. E a gente tem que tomar o mesmo caminho para voltar, muitas vezes sem pedido, gastando combustível, tempo e sem ganhar nada."
Entregadores precisam comprar mochilas
O iFood oferece a mochila térmica para entregadores, mas apenas após um tempo trabalhando. "Como vou começar um trabalho sem a 'bag' ou comprar uma de R$ 80, se estou desempregado?", pergunta Nelson. Muitos, quando iniciam nesse ramo, compram bolsas usadas ou sem logo de nenhuma empresa -- esta opção, mais barata e de melhor qualidade, dizem no grupo. A Rappi cobra, também, pela bolsa, mas devolve o valor depois de o funcionário cumprir um número mínimo de entregas. A Uber Eats também vende o material para quem quiser entregar pelo app.
O peso também maltrata os trabalhadores e dificulta o transporte em motocicletas e bicicletas. Segundo Julião, do Rio de Janeiro (RJ), com o isolamento social, os pedidos têm ficado mais pesados, por causa das pessoas que estão estocando comida. "Outro dia pediram 15 garrafas de água de um litro e meio e outros itens. Se eu chamar um carro para levar, perco muito tempo e tempo é dinheiro. Se eu levo, acabo com minhas costas", diz Julião, do Rio de Janeiro (RJ). "Trabalho de bicicleta e já andei 7 km para ganhar R$ 4,85. Tem cliente que pede melancia! O aplicativo sabe que uma melancia é pesada, que não é compra para quem pedala, mas eles não estão nem aí", diz Milton. "A 'bag' é de isopor, não aguenta uma melancia. Se quebrar, tenho que comprar outra."
iFood e Uber Eats se pronunciam; Rappi não respondeu
iFood, Rappi e a Uber Eats foram procurados e receberam, por e-mail, uma lista com as reclamações dos trabalhadores entrevistados.
A Uber Eats enviou uma nota que afirma que usuários e parceiros podem e devem avaliar um ao outro depois de cada entrega, de forma anônima, como forma de prevenir golpes. "Temos uma equipe que monitora essas informações e pode banir da plataforma usuários ou parceiros que tiverem uma média baixa de avaliações ou conduta que viole os termos e condições de uso ou o código de conduta da comunidade, como, por exemplo, comportamento inapropriado ou perigoso." A Uber Eats diz, também, que "oferece aos motoristas e entregadores parceiros, sem custo nenhum, uma cobertura em casos de acidentes pessoais durante viagens, que inclui reembolso por despesas médicas. Fala que as mochilas "são vendidas e distribuídas, às vezes, como reconhecimento a entregadores mais bem avaliados."
O iFood, também por e-mail, diz que, as taxas, consideradas baixas pelos entregadores, variam de acordo com a rota e a cidade. "Entregadores que têm entrega como fonte principal de renda têm ganhos mensais médios entre R$ 1.300 e R$ 2.500. Durante a crise, os ganhos dos mais ativos aumentaram 17%." Sobre as longas esperas enfrentadas por trabalhadores, a empresa afirma "mudanças foram feitas" para evitá-las e "evitar aglomerações de entregadores", mas não explicou quais. Afirma, ainda, que, "há uma taxa adicional paga (meia rota) caso o tempo de espera no restaurante seja muito alto. Na entrega, temos avisos no app do cliente e ferramentas para o entregador a se comunicar com ele (chat e ligação)".
Sobre os bloqueios, o iFood diz que não faria sentido bloquear um parceiro que entrega corretamente. "Erros, se acontecem, devem ser sinalizados pelo entregador no canal (contato.entregador@ifood.com.br), onde analisamos os casos individualmente. Se for equivocado, iremos reativar a conta. O bloqueio acontece quando há mau uso do app ou atitude que possa representar risco para entregadores, restaurantes e clientes. Sobre pedidos não entregues, não há qualquer cobrança. Não cobramos os entregadores em nenhuma circunstância, então, não há dívidas."
No caso dos equipamentos de proteção pessoal, o iFood afirma que "mais de 58 mil entregadores receberam as mensagens para retirada do álcool em gel [mas não informa quantos retiraram]. A distribuição começou por São Paulo e Rio de Janeiro e será estendida às demais cidades nos próximos dias."
O iFood nega que haja punição para entregadores que não aceitam pedidos "Se um entregador está disponível e rejeita pedidos, o algoritmo entende que ele (a) não está disponível e busca outra pessoa que esteja apta para realizar a entrega." Em caso de acidente, "a empresa oferece aos entregadores um seguro que dá cobertura enquanto estiverem logados realizando entregas e também no retorno para casa, sem custo".
A Rappi não respondeu à solicitação da reportagem.