Abalo psicológico e pai coagido em hospital: entenda drama de menina de 12 anos grávida pela 2ª vez após estupro no Piauí
Um relatório do ex-defensor público revela que o pai da menina de 12 anos grávida pela segunda vez após estupro teria sido coagido a assinar um documento na maternidade para mudar o desfecho do caso. A criança, de Teresina, no Piauí, faria um aborto legal, previsto em lei. O defensor relata que o pai dela, a quem ele representou no processo até sexta-feira da semana passada, tinha se mostrado favorável à interrupção da gestação, mas teria mudado de opinião sob pressão e autorizado a continuidade da gravidez. No ofício obtido pelo GLOBO, o representante da Defensoria Pública conta que A., desde o início, apoiava a filha na decisão de não seguir com a gestação. O Ministério Público investiga a suposta pressão feita sobre a família na unidade de saúde.
Sem previsão legal: Defensora pública é nomeada para atuar em favor de feto no caso de menina de 12 anos grávida pela 2ª vez após estupro
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“Após esta Defensoria tomar conhecimento da mudança de opinião do genitor, entramos em contato para saber o que havia ocorrido, momento no qual relatou que havia sido coagido a assinar um documento na maternidade e explicitou que estava arrependido, pois só queria o bem da sua filha e que iria permanecer seguindo o desejo dela”, diz o relatório.
Segundo o defensor Afonso Lima, que representava o pai, áudios e troca de mensagens em que o homem fez as acusações foram juntados em um processo no dia 4 de novembro. Anteriormente, o pai, que tem uma origem muito humilde, já havia procurado o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Teresina para contar sobre a pressão que sofrera.
Procurado nesta quarta-feira, Lima informou que não atua mais como representante de A. desde a última sexta, quando o pai da menina se apresentou com advogados. O motivo da mudança na defesa, de acordo com ele, não foi informado.
O relatório com os detalhes do caso faz parte de uma resposta a questionamentos feitos por entidades sociais de atendimento a mulheres vítimas de violência, que questionaram a morosidade no julgamento do caso. Também criticavam o fato, que veio à tona recentemente, de que a Defensoria Pública pediu que fosse determinada uma "curadoria especial" para o feto, o que foi considerado uma medida jurídica sem amparo legal.
Pela lei, só nascidos vivos podem ter representantes legais. O Estatuto do Nascituro, proposto em 2007 por representantes da base conservadora da Câmara de Deputados, tenta mudar esse entendimento, criando a possibilidade de representação legal para o feto e impedindo a aplicação da regra que hoje beneficia vítimas de estupro.
Defensor para o nascituro
O ofício detalhado por Lima aponta ainda que o defensor não representava o pai da menina em 6 de outubro do ano passado, data em que a juíza Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, da 1ª Vara de Infância e Juventude de Teresina, nomeou uma defensora pública para representar os interesses do feto, mesmo sem a legislação aprovada. O pedido de defesa foi feito pela própria Defensoria Pública do Piauí.
Em nota, a Defensoria não esclareceu o motivo da nomeação, e apenas afirmou que a medida foi deferida pelo “Juízo de pedido em audiência”. Mas em um documento interno da Defensoria Pública do Piauí, ao qual O GLOBO teve acesso, é afirmado, no resumo de atuação das defensoras, que a nomeação de uma curadora do nascituro foi “requerido pela Defensora Pública presente” e “deferido de pronto pela douta magistrada”. Quando o julgamento aconteceu, não havia informações sobre a medida considerada muito incomum. O órgão confirmou que a divulgação do caso à imprensa estava proibida por envolver menor de idade e estar sob sigilo de Justiça.
Após deferir o curador do nascituro, Freitas alegou motivos de "foro íntimo" para deixar o caso que passou aos cuidados da juíza Elfrida Costa Belleza, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. Ela aprovou o aborto legal em 28 de outubro.
No entanto, conforme noticiado pelo GLOBO, a defensora que atuava como "curadora especial" do feto, autorizada pela juíza anterior, recorreu ao tribunal e conseguiu suspender a realização do procedimento cirúrgico, em dezembro do ano passado. A ordem foi dada pelo desembargador José James Gomes Pereira, da 2ª Câmara Especializada Civil do Tribunal de Justiça do Piauí.
Na decisão do TJ, o desembargador alegou que a vítima optou por seguir a gestação, após a mãe ser orientada por médicos e pela advogada, sob o argumento de que ela poderia morrer caso o procedimento fosse realizado.
Vítima com emocional abalado
O defensor público Afonso Lima conta que tentou conversar com a menina de 12 anos, mas foi impedido pelo abrigo em que ela se encontra com o filho de apenas 1 ano, fruto de violência sexual anterior e que teve o pedido de interrupção da gravidez negado. A instituição alegou que o contato seria “mais prejudicial ao psicológico da adolescente” e que “após diversas tentativas de contato com a adolescente a mesma se mostrou inacessível e emocionada”.
Lima não se posicionou no documento quanto ao "curador especial" para o nascituro, limitando-se a dizer que entrou no processo depois do decisão tomada pelo juízo e que sua atuação se restringiu à defesa do pai da criança violentada.
De acordo com a advogada Mariana Paris, membro do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), uma das instituições que questionou a Defensoria Pública do Piauí por meio da ouvidoria, o caso é considerado uma “anomalia jurídica” por ir totalmente contra ao que prega a Constituição. Ela explica que só é sujeito de direito o nascituro nascido com vida.
— No caso dessa menina faz ainda menos sentido haver um curador especial, pois um feto que não tem a mesma proteção jurídica de uma criança está retirando os direitos garantidos à vítima, que são resguardados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela pode e deve realizar o aborto, em qualquer momento, sem autorização judicial, visto que foi vítima de um estupro e ainda da negligência do estado — aponta a advogada.