Abstenção recorde do Enem aprofunda as fraturas de um país em desalento
Falta de oxigênio, UTIs lotadas, guerra das vacinas e aposta em tratamento precoce/ineficaz. O resultado direto da omissão e da sabotagem das autoridades públicas no decorrer da pandemia do coronavírus é só a ponta de um iceberg que já causou 217 mil mortes no país. Essa é a parte visível da tragédia.
Outra, menos notada e discutida, é a erosão do futuro. Essa conta só agora começa a chegar.
O índice de abstenção da edição deste ano do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, é o estágio avançado de uma tragédia anunciada --e ainda não totalmente dimensionada.
No segundo dia de exame, mais da metade (55,3%) dos candidatos não compareceu aos locais da prova. Nesta década, a pior taxa havia sido registrada em 2017 (34,1%).
Desta vez eram esperados 5,5 milhões de estudantes, mas só 2.470.396 compareceram.
Em seis cidades de três estados, alunos foram impedidos de realizar o exame porque as salas estavam superlotadas. Isso aconteceu em Curitiba e Londrina, no Paraná, em Florianópolis, Santa Catarina, Pelotas, Caxias do Sul e Canoas, no Rio Grande do Sul.
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Havia pressão para que os responsáveis adiassem a realização do Enem deste ano por conta do recrudescimento dos casos de contaminação. Um abaixo assinado eletrônico chegou a reunir quase 400 mil assinaturas com este pedido. Em vão. Apenas o Amazonas e duas cidades de Rondônia tiveram os testes suspensos por causa do agravamento da pandemia.
Segundo o professor da Universidade Federal do ABC Fernando Luiz Cássio Silva, especialista em políticas educacionais e organizador do livro “Educação contra a Barbárie”, a luta agora é para que todos os ausentes possam remarcar e fazer o exame. Para ele, anular o exame, a essa altura, implicaria prejuízo para quem se arriscou e já fez a prova.
À coluna ele explica que o Enem é construído dentro da Teoria da Resposta ao Item (TRI), a mesma usada em outros exames de grande escala, como o PISA. “Vestibular tradicional, como a Fuvest, é exame de média escala. Eles são construídos a partir da Teoria Clássica dos Testes. Já o Enem é composto de itens pré-testados, com dificuldade calibrada. Por isso dá para compor várias provas diferentes e estatisticamente equivalentes.”
Até o começo da semana, o Inep (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisas Educacionais) informou ter recebido 18.210 pedidos de reaplicação do exame feitos por alunos que faltaram porque estavam com coronavírus. O prazo para fazer este pedido acaba na sexta-feira, dia 29. Quem teve problemas relacionados a infraestrutura das salas, como falta de luz ou mesmo a superlotação, também pode requerer a reaplicação.
Dificilmente, porém, os mais de 3 milhões de estudantes ausentes farão a nova prova.
Em sua coluna no jornal O Globo desta semana, o jornalista Antônio Gois escreveu que a abstenção recorde da atual edição do Enem é resultado do agravamento de um problema que já existia antes mesmo da pandemia: a desmotivação dos jovens em concluir o ensino médio e tentar uma vaga no ensino superior.
Em 2020, ano marcado pela quarentena e a suspensão das aulas presenciais, o instituto Datafolha apontou que quase 1 em cada 10 estudantes abandonou a escola no período (8,4%). São mais de 4 milhões de alunos, o equivalente à população inteira do Uruguai.
Entre os motivos do abandono estão questões financeiras e falta de acesso a aulas remotas. Em outras palavras: estudar se torna, cada dia mais, um privilégio de poucos.
Distante ainda do horizonte, o mundo pós-Covid, ao menos no Brasil, se revelará ainda mais injusto, brutalizado e desigual. Essa distância começa e termina na educação.