Agricultura urbana: como combater a fome nas fissuras do concreto?

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - APRIL 22: Volunteer prepares food in the kitchen of the gastronomy course provided by Unisuam University for the 'Covid Sem Fome' project, on April 22, 2020 in Rio de Janeiro, Brazil. 'Covid Sem Fome' (Covid Without Hunger) is a social project that produces and distributes meals and supplies to homeless and unemployed people in Rio de Janeiro during the coronavirus pandemic (COVID-19). The volunteers distribute 200 meals per day. According to the Brazilian Health Ministry, Brazil has 45.757 positive cases of coronavirus (COVID-19) and a total of 2.906 deaths. (Photo by Bruna Prado/Getty Images)
Foto: Bruna Prado (via Getty Images)

Por André R. Biazoti e Henrique Frota*, autores convidados

Em sua recente publicação, o 2Âș InquĂ©rito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN) trouxe resultados alarmantes em relação Ă  situação da fome no paĂ­s.

Segundo a pesquisa, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), aproximadamente 33,1 milhÔes de pessoas estão em situação de fome, chegando a 15,5% de domicílios no país, com principal impacto em mulheres negras.

É uma tragĂ©dia que representa um retrocesso histĂłrico no paĂ­s, que atinge a marca de mais da metade (58,7%) da população brasileira em insegurança alimentar.

SĂŁo vidas de pessoas e de famĂ­lias inteiras em situação desesperadora e que exige resposta imediata do poder pĂșblico.

AlĂ©m de iniciativas assistenciais de emergĂȘncia, Ă© necessĂĄrio pensar estratĂ©gias a mĂ©dio prazo para garantir a segurança alimentar e nutricional e a geração de renda da população em situação de vulnerabilidade.

Historicamente, a agricultura urbana tem cumprido um papel central na mitigação dos impactos de crises econÎmicas e sociais, possibilitando a produção e o abastecimento local de alimentos e a redução de gastos domésticos.

A pråtica, realizada desde o início dos processos de urbanização no país, considera a produção vegetal e animal no interior ou nas periferias das cidades, possuindo características próprias que a difere da agricultura realizada em zonas rurais, como a escala reduzida, a utilização de recursos urbanos, a proximidade com o mercado consumidor, entre outros aspectos.

Recentemente, a pråtica tem sido reconhecida pela Organização para Alimentação e Agricultura das NaçÔes Unidas (FAO/UN) como importante ferramenta para a construção de cidades resilientes frente às mudanças climåticas, na perspectiva do desenvolvimento de sistemas alimentares sustentåveis nas cidades e suas regiÔes.

O sexto e Ășltimo relatĂłrio do Painel Intergovernamental sobre Mudanças ClimĂĄticas (IPCC), publicado em 2021, tambĂ©m aponta a agricultura urbana como uma estratĂ©gia fundamental de adaptação no contexto das mudanças climĂĄticas como forma de garantir segurança alimentar e nutricional da população e ampliar as ĂĄreas verdes na cidade.

Apesar da importĂąncia da agricultura urbana ser reconhecida mundialmente e da urgĂȘncia da fome requerer a ampliação do acesso ao alimento saudĂĄvel Ă s camadas mais pobres da população, pouco tem se avançado na estruturação de programas de implantação de hortas urbanas nas cidades brasileiras.

A agricultura urbana e a agroecologia, quando presentes, são consideradas de forma marginal nos Planos Diretores Estratégicos e nas leis de zoneamento. Essa avaliação foi apresentada recentemente no evento "Agroecologia e Plano Diretor Estratégico: instrumentos urbanísticos para agricultura e compostagem nas cidades", organizado pelo Instituto Pólis e pelo Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU), realizado virtualmente no início de maio.

"Os avanços no reconhecimento da agricultura nos territĂłrios urbanos se dĂĄ graças Ă  luta de organizaçÔes, grupos e redes da sociedade civil que pressionam para a estruturação de polĂ­ticas pĂșblicas especĂ­ficas, mas, mesmo assim, a presença da agroecologia nos instrumentos de planejamento urbano e zoneamento estĂĄ aquĂ©m do desejado" avalia AndrĂ© Biazoti, integrante da coordenação da Campanha SĂŁo Paulo Composta, Cultiva, coordenada pelo Instituto PĂłlis.

A partir de experiĂȘncias das regiĂ”es metropolitanas de SĂŁo Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o evento reforçou a necessidade de se reconhecer que o direito Ă  cidade tambĂ©m deve considerar o direito humano Ă  alimentação saudĂĄvel, previsto na Constituição Federal e expresso por meio de polĂ­ticas de segurança alimentar e nutricional e de apoio e suporte Ă  agroecologia e Ă  agricultura nas cidades.

Além disso, ficou explícito que os Planos Diretores precisam estar integrados a outros instrumentos de planejamento, como o Programa de Metas e as leis orçamentårias.

Combater a fome nas cidades deve se pautar na implementação de polĂ­ticas setoriais que dĂȘem conta de todo o ciclo do alimento, do campo Ă  mesa e de volta ao campo, considerando logĂ­stica de entrega e armazenamento de alimentos, comercialização justa e acesso a mercados institucionais, apoio e assistĂȘncia tĂ©cnica para produção e transição agroecolĂłgica e gestĂŁo de resĂ­duos orgĂąnicos por meio da compostagem.

As discussĂ”es realizadas no Ăąmbito do evento contribuĂ­ram para subsidiar propostas para a ConferĂȘncia Popular pelo Direito Ă  Cidade, realizada em SĂŁo Paulo entre os dias 3 a 5 de junho. Os sistemas alimentares foram contemplados em uma das propostas da ConferĂȘncia justamente indicando a necessidade das prĂĄticas de agricultura serem consideradas nos instrumentos de planejamento urbano.

No entanto, a prĂĄtica possui uma vasta diversidade de expressĂ”es e de funcionalidades que nĂŁo devem ser desprezadas, podendo variar de fazendas urbanas com fins de abastecimento de ĂĄreas como desertos alimentares atĂ© pequenas hortas institucionais com fins pedagĂłgicos e de fortalecimento comunitĂĄrio. Nesse sentido, especialistas no assunto trazem atenção de que a restrição da agricultura em zonas rurais do municĂ­pio Ă© insuficiente e limita a expressĂŁo da diversidade de experiĂȘncias de agricultura urbana existentes.

É desejĂĄvel que iniciativas de agricultura estejam consideradas em zonas residenciais, comerciais, mistas e outras, nĂŁo restringindo apenas a zonas agrĂ­colas ou rurais. Os instrumentos urbanĂ­sticos devem considerar a realidade rural de forma integrada ao desenvolvimento urbano e garantir que suas especificidades estejam expressas e consideradas nas polĂ­ticas pĂșblicas.

A agroecologia pressupÔe a integração entre campo-cidade a partir de uma série de pautas que dialogam diretamente com um projeto de sociedade popular e anticapitalista, como a luta antirracista, o feminismo, a cultura, a economia solidåria e outras discussÔes a partir do território.

Defender a agroecologia na cidade é defender a vida frente aos interesses econÎmicos de corporaçÔes e outros agentes do mercado, incorporando-se, dessa forma, as lutas e movimentos sociais que defendem o direito à cidade como um compromisso ético e político de defesa dos bens comuns essenciais a uma vida plena e digna.

Combater a fome e mitigar os efeitos da mudança climåtica envolvem não apenas a redução das desigualdades sociais, mas a revisão das estruturas excludentes de planejamento urbano que reforçam as dicotomias entre o que é rural e o que é urbano e que restringem o acesso da população aos bens comuns nas cidades.

Lutar pelo direito à cidade é, hoje, um compromisso histórico para garantir o direito de morar, plantar e comer na cidade, e os instrumentos de planejamento, como os Planos Diretores Estratégicos, devem ser elaborados à luz dos direitos sociais e não dos interesses econÎmicos corporativistas.

Estå mais do que na hora de ouvir o grito dos movimentos populares: "Se o campo e a cidade plantar, todo mundo vai almoçar".

André R. Biazoti é gestor ambiental e mestre em agricultura urbana pela ESALQ/USP. integrante da coordenação da Campanha São Paulo Composta, Cultiva do Instituto Pólis, conselheiro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Solidårio e Sustentåvel de São Paulo (CMDRSS) e integrante do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).

Henrique Frota Ă© advogado, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC e mestre em Direito pela PUC/SP. Atualmente Ă© Diretor Executivo do Instituto PĂłlis. Diretor Executivo da Abong. Assessor da Plataforma Global pelo Direito Ă  Cidade. Integra o FĂłrum Nacional de Reforma Urbana e a Plataforma Dhesca Brasil.

Nosso objetivo Ă© criar um lugar seguro e atraente onde usuĂĄrios possam se conectar uns com os outros baseados em interesses e paixĂ”es. Para melhorar a experiĂȘncia de participantes da comunidade, estamos suspendendo temporariamente os comentĂĄrios de artigos