Agricultura urbana: como combater a fome nas fissuras do concreto?
Por André R. Biazoti e Henrique Frota*, autores convidados
Em sua recente publicação, o 2Âș InquĂ©rito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN) trouxe resultados alarmantes em relação Ă situação da fome no paĂs.
Segundo a pesquisa, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), aproximadamente 33,1 milhĂ”es de pessoas estĂŁo em situação de fome, chegando a 15,5% de domicĂlios no paĂs, com principal impacto em mulheres negras.
Ă uma tragĂ©dia que representa um retrocesso histĂłrico no paĂs, que atinge a marca de mais da metade (58,7%) da população brasileira em insegurança alimentar.
SĂŁo vidas de pessoas e de famĂlias inteiras em situação desesperadora e que exige resposta imediata do poder pĂșblico.
AlĂ©m de iniciativas assistenciais de emergĂȘncia, Ă© necessĂĄrio pensar estratĂ©gias a mĂ©dio prazo para garantir a segurança alimentar e nutricional e a geração de renda da população em situação de vulnerabilidade.
Historicamente, a agricultura urbana tem cumprido um papel central na mitigação dos impactos de crises econÎmicas e sociais, possibilitando a produção e o abastecimento local de alimentos e a redução de gastos domésticos.
A prĂĄtica, realizada desde o inĂcio dos processos de urbanização no paĂs, considera a produção vegetal e animal no interior ou nas periferias das cidades, possuindo caracterĂsticas prĂłprias que a difere da agricultura realizada em zonas rurais, como a escala reduzida, a utilização de recursos urbanos, a proximidade com o mercado consumidor, entre outros aspectos.
Recentemente, a pråtica tem sido reconhecida pela Organização para Alimentação e Agricultura das NaçÔes Unidas (FAO/UN) como importante ferramenta para a construção de cidades resilientes frente às mudanças climåticas, na perspectiva do desenvolvimento de sistemas alimentares sustentåveis nas cidades e suas regiÔes.
O sexto e Ășltimo relatĂłrio do Painel Intergovernamental sobre Mudanças ClimĂĄticas (IPCC), publicado em 2021, tambĂ©m aponta a agricultura urbana como uma estratĂ©gia fundamental de adaptação no contexto das mudanças climĂĄticas como forma de garantir segurança alimentar e nutricional da população e ampliar as ĂĄreas verdes na cidade.
Apesar da importĂąncia da agricultura urbana ser reconhecida mundialmente e da urgĂȘncia da fome requerer a ampliação do acesso ao alimento saudĂĄvel Ă s camadas mais pobres da população, pouco tem se avançado na estruturação de programas de implantação de hortas urbanas nas cidades brasileiras.
A agricultura urbana e a agroecologia, quando presentes, sĂŁo consideradas de forma marginal nos Planos Diretores EstratĂ©gicos e nas leis de zoneamento. Essa avaliação foi apresentada recentemente no evento "Agroecologia e Plano Diretor EstratĂ©gico: instrumentos urbanĂsticos para agricultura e compostagem nas cidades", organizado pelo Instituto PĂłlis e pelo Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU), realizado virtualmente no inĂcio de maio.
"Os avanços no reconhecimento da agricultura nos territĂłrios urbanos se dĂĄ graças Ă luta de organizaçÔes, grupos e redes da sociedade civil que pressionam para a estruturação de polĂticas pĂșblicas especĂficas, mas, mesmo assim, a presença da agroecologia nos instrumentos de planejamento urbano e zoneamento estĂĄ aquĂ©m do desejado" avalia AndrĂ© Biazoti, integrante da coordenação da Campanha SĂŁo Paulo Composta, Cultiva, coordenada pelo Instituto PĂłlis.
A partir de experiĂȘncias das regiĂ”es metropolitanas de SĂŁo Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o evento reforçou a necessidade de se reconhecer que o direito Ă cidade tambĂ©m deve considerar o direito humano Ă alimentação saudĂĄvel, previsto na Constituição Federal e expresso por meio de polĂticas de segurança alimentar e nutricional e de apoio e suporte Ă agroecologia e Ă agricultura nas cidades.
AlĂ©m disso, ficou explĂcito que os Planos Diretores precisam estar integrados a outros instrumentos de planejamento, como o Programa de Metas e as leis orçamentĂĄrias.
Combater a fome nas cidades deve se pautar na implementação de polĂticas setoriais que dĂȘem conta de todo o ciclo do alimento, do campo Ă mesa e de volta ao campo, considerando logĂstica de entrega e armazenamento de alimentos, comercialização justa e acesso a mercados institucionais, apoio e assistĂȘncia tĂ©cnica para produção e transição agroecolĂłgica e gestĂŁo de resĂduos orgĂąnicos por meio da compostagem.
As discussĂ”es realizadas no Ăąmbito do evento contribuĂram para subsidiar propostas para a ConferĂȘncia Popular pelo Direito Ă Cidade, realizada em SĂŁo Paulo entre os dias 3 a 5 de junho. Os sistemas alimentares foram contemplados em uma das propostas da ConferĂȘncia justamente indicando a necessidade das prĂĄticas de agricultura serem consideradas nos instrumentos de planejamento urbano.
No entanto, a prĂĄtica possui uma vasta diversidade de expressĂ”es e de funcionalidades que nĂŁo devem ser desprezadas, podendo variar de fazendas urbanas com fins de abastecimento de ĂĄreas como desertos alimentares atĂ© pequenas hortas institucionais com fins pedagĂłgicos e de fortalecimento comunitĂĄrio. Nesse sentido, especialistas no assunto trazem atenção de que a restrição da agricultura em zonas rurais do municĂpio Ă© insuficiente e limita a expressĂŁo da diversidade de experiĂȘncias de agricultura urbana existentes.
Ă desejĂĄvel que iniciativas de agricultura estejam consideradas em zonas residenciais, comerciais, mistas e outras, nĂŁo restringindo apenas a zonas agrĂcolas ou rurais. Os instrumentos urbanĂsticos devem considerar a realidade rural de forma integrada ao desenvolvimento urbano e garantir que suas especificidades estejam expressas e consideradas nas polĂticas pĂșblicas.
A agroecologia pressupÔe a integração entre campo-cidade a partir de uma série de pautas que dialogam diretamente com um projeto de sociedade popular e anticapitalista, como a luta antirracista, o feminismo, a cultura, a economia solidåria e outras discussÔes a partir do território.
Defender a agroecologia na cidade Ă© defender a vida frente aos interesses econĂŽmicos de corporaçÔes e outros agentes do mercado, incorporando-se, dessa forma, as lutas e movimentos sociais que defendem o direito Ă cidade como um compromisso Ă©tico e polĂtico de defesa dos bens comuns essenciais a uma vida plena e digna.
Combater a fome e mitigar os efeitos da mudança climåtica envolvem não apenas a redução das desigualdades sociais, mas a revisão das estruturas excludentes de planejamento urbano que reforçam as dicotomias entre o que é rural e o que é urbano e que restringem o acesso da população aos bens comuns nas cidades.
Lutar pelo direito à cidade é, hoje, um compromisso histórico para garantir o direito de morar, plantar e comer na cidade, e os instrumentos de planejamento, como os Planos Diretores Estratégicos, devem ser elaborados à luz dos direitos sociais e não dos interesses econÎmicos corporativistas.
Estå mais do que na hora de ouvir o grito dos movimentos populares: "Se o campo e a cidade plantar, todo mundo vai almoçar".
André R. Biazoti é gestor ambiental e mestre em agricultura urbana pela ESALQ/USP. integrante da coordenação da Campanha São Paulo Composta, Cultiva do Instituto Pólis, conselheiro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Solidårio e Sustentåvel de São Paulo (CMDRSS) e integrante do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).
Henrique Frota Ă© advogado, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC e mestre em Direito pela PUC/SP. Atualmente Ă© Diretor Executivo do Instituto PĂłlis. Diretor Executivo da Abong. Assessor da Plataforma Global pelo Direito Ă Cidade. Integra o FĂłrum Nacional de Reforma Urbana e a Plataforma Dhesca Brasil.