Ainda tem amor, mas termos como 'sentar, 'tomar' e 'travar' dominam letras dos hits brasileiros

Em 1991, ZezĂ© Di Camargo e Luciano chegaram ao topo das paradas cantando “É o amor / que mexe com a minha cabeça / e me deixa assim”. Passados 20 anos, algo parece ter mudado na forma com que hits do cancioneiro popular no Brasil vĂȘm expressando seus sentimentos. O romantismo, ao que tudo indica, vem perdendo espaço para algo mais, digamos, explĂ­cito e carnal. Basta observar a letra de “Pipoco”, que ontem ocupava o primeiro lugar no Top 50 Brasil do Spotify: “O peĂŁo nĂŁo aguenta com essa sentada/ NĂłs Ă© embaçada / Na galopada/ Nem oito segundos / O peĂŁo nĂŁo aguenta com essa sentada”, diz trecho do funknejo interpretado por Ana Castela, Melody e DJ Chris no Beat.

Levantamento feito pelo GLOBO das mĂșsicas que estiveram nas 50 primeiras posiçÔes no Spotify no Brasil ao longo de 29 semanas (de 31 de dezembro a 21 de julho) mostra que prevalecem os gĂȘneros sertanejo, funk e trap, e que o ideal romĂąntico continua dando as cartas, pero no mucho. Entre os termos que mais aparecem nas 131 composiçÔes (muitas permaneceram no ranking por semanas, daĂ­ a pouca variação), num total de 39.607 palavras, estĂŁo os verbos “amar”, mas seguido de perto por “sentar”, “tomar”, “travar” e “jogar”, nesta ordem. Com exceção de amor (e variaçÔes como “amo”, “amado”) todas surgem, claro, em contextos de elevado cunho sexual. Para se ter uma ideia, amor e variaçÔes aparecem 3.326 vezes, contra 2.851 “sentadas” (e flexĂ”es como sentadona, sentadinha, sentar).

— Estamos vivendo um momento em que o uso da imagem sexual Ă© direta — diz JĂșlio Diniz, pesquisador e professor da PUC-Rio. — Acho que temos que pensar: “Para onde foi a metĂĄfora?” Parece que existe hoje um compromisso em fazer uma letra descritiva.

Para Davi Kneip, um dos compositores de “Sentadona”, hit do funk que ficou por quatro semanas em primeiro lugar, existe um motivo para que esses termos apareçam tanto.

— O funk Ă© um gĂȘnero musical voltado para a dança, entĂŁo essas palavras induzem a pessoa a se mexer, ao movimento — opina.

Simone Pereira de SĂĄ, pesquisadora de mĂșsica brasileira e professora da UFF, diz que as cançÔes devem ser pensadas dentro de um contexto, seja social ou polĂ­tico. E considerar que foram escritas como um “convite ao movimento” Ă© um ponto que nĂŁo se pode ignorar.

— Essas letras sĂŁo um convite ao engajamento, sĂŁo palavras que convocam a dançar. Mas essas brincadeiras e ludicidade em torno do erotismo sempre existiram. Tem uma mĂșsica da Carmen Miranda em que ela canta “Eu dei/ O que foi que vocĂȘ deu meu bem?/ Eu dei/ Guarde um pouco para mim tambĂ©m”. É uma composição cheia de duplos sentidos, dos anos 1930. (Isso) faz parte da histĂłria da mĂșsica popular brasileira, em todos os gĂȘneros — avalia.

Na lista analisada, o sertanejo, que costuma trazer temas como traição e sofrĂȘncia, dĂĄ mostras de que se rendeu ao apelo sexual. Em “Fala mal de mim”, Gusttavo Lima canta: “Puxa meu cabelo, tira a minha roupa/ Faz bem gostosinho, daquele jeitĂŁo.”

Outro ponto levantado por especialistas para uma possĂ­vel explicação do uso constante desses termos e que atĂ© justifica essa inversĂŁo no sertanejo Ă© o foco no TikTok e no potencial de viralização na plataforma de streaming. Um estudo da plataforma Winnin, por exemplo, mostra que sete das dez mĂșsicas mais ouvidas no Spotify em 2020 no mundo viralizaram primeiro naquela rede social.

—As mĂșsicas estĂŁo muito focadas em atingir pĂșblico no TikTok. Sempre pensamos em cada vĂ­rgula que colocamos nas composiçÔes, tudo Ă© pensado — admite Cantini, compositor de sucessos como “Deixa de onda”, “Galopa” e “Fala mal de mim”, as duas Ășltimas atualmente no Top 50 Brasil.

A repetição dos termos e semelhança dos temas abordados nas cançÔes leva a questionar se existe uma fĂłrmula ou algo como uma receita de bolo para chegar ao primeiro lugar das paradas. Segundo os compositores, apesar de tudo ser calculado, nĂŁo existe regra para escrever um hit, mas Romeu R3 achou uma forma de ajudar escritores aspirantes a sonharem com o sucesso. ResponsĂĄvel por hits de Anitta, Maluma, Wesley SafadĂŁo e LuĂ­sa Sonza, ele criou o site Composição MilionĂĄria, em que explica questĂ”es burocrĂĄticas e tĂ©cnicas do processo de escrever uma mĂșsica.

— O projeto envolve criar um curso on-line e, posteriormente, pretendemos oferecer mentoria para acompanhar de perto esse compositor — diz Romeu R3. — Como compositor, Ă© nosso papel identificar a diferença de linguagem entre os gĂȘneros. Isso Ă© muito visĂ­vel. Falar de amor no pagode, Ă© diferente de quando vocĂȘ fala de amor em uma mĂșsica de rap. Mas o caminho Ă© sempre gerar impacto.

Nosso objetivo Ă© criar um lugar seguro e atraente onde usuĂĄrios possam se conectar uns com os outros baseados em interesses e paixĂ”es. Para melhorar a experiĂȘncia de participantes da comunidade, estamos suspendendo temporariamente os comentĂĄrios de artigos