América do Sul não tem integração suficiente para ter moeda única, diz professor

Moeda única é ideia distante e que levará anos para ser discutida
Moeda única é ideia distante e que levará anos para ser discutida
  • Moeda única ainda é um projeto de longo de prazo para a América do Sul

Um projeto de moeda para negócios na América do Sul gerou muita discussão nos últimos dias. A desinformação foi tanta que alguns incautos até soltaram nas redes sociais que o real poderia acabar. Nada mais longe da verdade.

O que vem sendo discutido, e não vem apenas do governo Lula, é a adoção de uma moeda comum para países sul-americanos usarem em transações e reduzir a dependência e a oscilação do dólar

"Pretendemos quebrar as barreiras em nossas trocas, simplificar e modernizar as regras e incentivar o uso de moedas locais. Também avançamos nas discussões sobre uma moeda sul-americana comum que possa ser usada tanto para fluxos financeiros quanto comerciais, reduzindo custos operacionais e nossa vulnerabilidade externa", escreveram Lula e Alberto Fernández em artigo conjunto a um veículo portenho.

No ano passado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e seu secretário-executivo, Gabriel Galípolo, escreveram um artigo defendendo uma moeda comum para impulsionar o comércio sul-americano.

O Yahoo Notícias ouviu Leonardo Trevisan, professor de economia e relações internacionais da ESPM, para explicar alguns conceitos usados nos últimos dias

Yahoo: O que acha da ideia de uma moeda comum na América do Sul?

Leonardo Trevisan: A lógica de uma moeda comum na América é uma ideia antiga. A primeira vez que ela apareceu foi em 1991, no início do Mercosul, numa outra realidade internacional em que blocos econômicos estavam sendo formados e o Mercosul mesmo tentava se viabilizar como um enfrentamento à Alca. Essa ideia está sempre movida pelo princípio: de ativar, reconstruir ou aumentar a integração regional. É evidente que não somos a União Europeia. A ideia em torno do euro é um longo processo. E nenhum desses passos foi iniciado nem no Mercosul, quanto mais na América Latina. É apenas um desejo, uma vontade mas que, pelas diferenças de perfil macroeconômico, não permitiria pensarmos numa moeda comum. É só ver a situação cambial da Argentina e do Brasil, as duas maiores economias da América do Sul. Apenas aí já não daria para pensarmos numa moeda comum. É por isso que o ministro Haddad está tendo bastante cautela para tratar do assunto.

Y: Quais são as vantagens e as desvantagens de uma moeda única, mesmo que para apenas transações e para substituir o dólar, como é o que parece com o sur?

LF: No economês clássico ela é uma moeda veículo, uma moeda digital. É uma moeda específica para facilitar transações comerciais e financeiras entre os países. Isso já vem sendo feito em outros lugares. A China, com seus países-satélites como Laos, Vietnã e Cambodja, faz trocas comerciais com o Renminbi [cuja unidade básica é o yuan] como referência. Quando você tem uma moeda apenas para o comércio, é apenas para diminuir custos das transações baseados em dólar, exatamente para evitar que as oscilações da moeda dos EUA afete as transações desse comércio. Esse exemplo do Renminbi está na ideia do sur, uma moeda cuja função única é facilitar o comércio.Em outras palavras: quando exportadores brasileiros venderem mercadorias para a Argentina, podem ter uma referência de uma moeda padrão que não seja o dólar. Isto vai aparecer porque está sendo pensado junto a um fundo garantidor, exatamente para promover exportações. É um processo que não é inovador e que tem vários exemplos no mundo.

Y: A América do Sul já tem uma integração forte o suficiente para pensarmos em moeda única?

LF: A América do Sul ainda não tem uma integração suficiente sólida e bem construída para sustentar a ideia de uma moeda única. Note que as etapas para construir o euro começaram no final dos anos 80 e alcançaram um acordo prévio [o Acordo de Maastrich] em 1992, que definia uma quantidade de déficit fiscal para cada país. Nenhum país queria adotar o euro. Nenhum país hoje que adota o euro pode ter um déficit maior que 3% do seu PIB. Você cria uma política macroeconômica mais ou menos comum antes de criar a moeda. Estamos muito longe disso na América Latina. O déficit na Argentina é muito maior do que no Brasil. É uma preocupação que funciona como um impedimento para pensarmos em ter uma moeda única,

Y: Vamos supor que o sur seja implantado com as condições destacadas (sem acabar com as moedas nacionais e apenas para transações). Será que teremos condições de cogitar um projeto como o euro?

LF: Vamos imaginar que teremos uma moeda apenas para facilitar as transações comerciais, uma moeda veículo, com um fim bem definido. Uma moeda única é outra realidade. Para você ter o euro, você tinha outras liberdades anteriores. A formação para o trabalho, por exemplo, é reconhecida em todos os países. A liberdade de capital é total. A liberdade de produtos e circulação também. Nem mesmo isso temos no Mercosul. Nós não conseguimos reconhecer um diploma do Brasil na Argentina e vice-versa. É um longo processo. Se nós não temos nem esse reconhecimento, imagina como podemos lidar com padrões de déficit fiscal, que seria um ponto essencial e, principalmente, padrões de relacionamento com moedas externas. A valorização do dólar no Brasil e na Argentina é uma referência para esse impedimento.