App do Ministério da Saúde indica cloroquina para ressaca e até para gatos

Brazil's President Jair Bolsonaro, wearing a mask to curb the spread of COVID-19, greets Health Minister Gen. Eduardo Pazuelo, left, during a ceremony at the Planalto Presidential Palace, in Brasilia, Brazil, Wednesday, Sept. 16, 2020. After almost four months overseeing the COVID-19 response as interim health minister, Gen. Eduardo Pazuello will finally be made a full minister. (AP Photo/Eraldo Peres)
No entanto, programadores analisaram como o formulário funciona e descobriram que, ao invés de facilitar o diagnóstico da doença, o aplicativo receita o coquetel do suposto "tratamento precoce" para quase qualquer caso (Foto: AP Photo/Eraldo Peres)

Se dependesse do aplicativo lançado pelo Ministério da Saúde para diagnosticar a Covid-19, o TrateCOV, pessoas com sintomas de ressaca, como uma leve dor de cabeça, poderiam receber uma receita para iniciar tratamento com cloroquina, sua derivada hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina — medicamentos que não têm comprovação científica de eficácia para combater o coronavírius.

O aplicativo TrateCOV foi lançado no dia 14 de janeiro, em Manaus, pelo próprio ministro da Saúde Eduardo Pazuello e seria indicado para profissionais de saúde. Segundo a pasta, a plataforma é direcionada a profissionais de saúde para "aprimorar e agilizar os diagnósticos da Covid-19" e ajudar "o atendimento e resposta adequados para o paciente de acordo com cada caso".

Na tarde desta quinta-feira (21), porém, o aplicativo saiu do ar. Procurado pelo Yahoo! Notícias, o Ministério da Saúde disse que a plataforma foi “lançada como um projeto-piloto” e que ainda não “estava funcionando oficialmente, apenas como um simulador”. Além disso, o órgão atribuiu a ativação do programa a uma “invasão”, afirmando que a retirada do ar será momentânea.

“O sistema foi invadido e ativado indevidamente – o que provocou a retirada do ar, que será momentânea”, afirmou. A pasta, porém, não apresentou provas e não deu detalhes sobre o que seria a “invasão”.

No entanto, programadores analisaram como o formulário funciona e descobriram que, ao invés de facilitar o diagnóstico da doença, o aplicativo receita o coquetel do suposto "tratamento precoce" para quase qualquer caso.

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“Código de programação é a materialização de uma tomada de decisão objetiva. O código segue uma linguagem lógica, não tem espaço para ambiguidades. A decisão de colocar cloroquina e ivermectina é uma decisão de política pública consciente e muito clara”, explica, pelo Twitter, o advogado e pesquisador em tecnologia Ronaldo Lemos.

Para ele, há prova “objetiva e inconstestável” de que houve “crime de responsabilidade por parte do presidente” Jair Bolsonaro (sem partido) que pode ser analisada seguindo o código de programação do aplicativo.

“Uma prova objetiva e incontestável de que houve crime de responsabilidade por parte do presidente é o código de programação do aplicativo do Ministério da Saúde, o TrateCov. A palavra cloroquina aparece 86 vezes no código e ivermectina 113”, disse.

De fato, é possível acessar o código do TrateCov por este link e pesquisar quantas vezes os nomes dos medicamentos aparecem no desenvolvimento do aplicativo.

Cloroquina até para gato

Um repórter do jornal El País acessou o app e preencheu as informações com os dados de seu pet: um gato de 70 centímetros, cerca de 8 quilos e alguns sintomas como febre e fadiga por um dia.

O rerpórter ainda específicou que o suposto paciente tinha insuficiência cardíaca, comorbidade considerada de risco no caso da Covid-19, sobretudo atrelada ao consumo de medicamentos como cloroquina — a droga utilizada em casos de malária pode alterar os batimentos do coração, segundo a prórpia bula do remédio.

Isso foi o suficiente para o Ministério da Saúde apontar que o gato de 1 ano poderia receber, ao longo de cinco dias, 6 comprimidos de Difostato de Cloroquina 500 mg; 12 comprimidos de Hidroxicloroquina 200 mg; 1 comprimido diário de Ivermectina 6mg; 5 comprimidos de Azitromicina 500 mg; 10 comprimidos de Doxiciclina 100 mg; ou ainda 14 comprimidos de sulfato de zinco por 7 dias.

O TrateCov não chega a pedir o CPF do paciente, mas indica um espaço para que o profissional da saúde preencha seus dados e coloque seu CRM. A plataforma é “um ambiente de simulação” que provisoriamente está “disponível, exclusivamente, para médicos e enfermeiros que atuam na Secretaria de Saúde do Município de Manaus, na Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas e Hospitais privados do Município de Manaus”, conforme está descrito pelo ministério.

Repercussão negativa

Nesta quarta-feira (20), o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) pediu hoje à Justiça Federal que tire do ar o aplicativo TrateCOV. Freixo questionou as recomendações de tratamento feitas pelo aplicativo, bem como a possibilidade de ele ser acessado por pacientes.

Segundo o deputado, há um "desvio de finalidade e evidente violação às normas da Constituição da República" em seu uso.

"Além de contrariar a autonomia do médico, o livre acesso ao aplicativo a qualquer pessoa, permite que pacientes sem orientação profissional tenham acesso à indicação medicamentosa o que, em casos graves, pode resultar na morte do paciente", diz o pedido feito pelo deputado.

Diante da repercussão negativa, ainda na quarta-feira (20), o site do Ministério da Saúde foi atualizado. “O Ministério da Saúde esclarece que o TrateCov orienta opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada e oferece total autonomia para que o profissional médico decida o melhor tratamento para o paciente, de acordo com cada caso”, afirma.