Artigo: O que Adam Smith diria sobre o litro de água a R$ 93 reais
Do meio da “tragédia”, de naturezas climática e social, que ocorreu no Litoral Norte paulista, chegam notícias de vários outros absurdos, dentre eles chama a atenção o preço do litro de água vendido a 93 reais. Não há justificativa para a fixação desse valor. Talvez, numa visão corrente e absolutamente equivocada do pensamento de Adam Smith – tido como um dos fundadores da economia política moderna –, a justificativa seria a lei da oferta e da procura: quando a demanda excede a oferta, o preço do produto sobre, e o contrário é verdadeiro. Portanto, a população ilhada em alguns bolsões secos nas praias paulistas geraria muita demanda para o litro da água, produto escasso tendo em vista a dificuldade de logística na reunião, o que levaria o preço à estratosfera. Nada mais distante dos livros de Adam Smith.
Adam Smith se autodeclarava “filosofo moral” – e não economista. Seu livro mais conhecido, abreviadamente “Riqueza das Nações” (RN), é apenas uma das partes que compuseram seu curso de filosofia moral. Desse curso, restaram dois livros: além de RN, a “Teoria dos Sentimentos Morais” (TSM), que foi seu primeiro livro. Na verdade, pelo contexto da escrita e das revisões dessas duas obras, há evidências que permitem concluir que ambas poderiam ser lidas e estudadas como um único livro, o livro texto, digamos assim, do seu curso. Por razões de espaço, este artigo ficará limitado a uma única relação entre os conceitos desenvolvidos na TSM e na RN.
Convém ressaltar, inicialmente, que o filósofo escocês era adepto da metodologia de pesquisa de Isaac Newton: a observação da natureza permitiria descobrir padrões, identificados, então, como leis da natureza (leis físicas). Smith aplicou essa metodologia às ciências sociais – de maneira muito próxima do que, mais tarde, viriam a defender respeitados antropólogos. Muitas das suas conclusões decorrem, dessa forma, da observação das relações interpessoais e sociais, e não da “sabedoria humana” (como ele próprio afirma).
Na RN, Smith observa que há uma propensão do ser humano em estabelecer condutas de troca, de permuta, o que resultaria no desenvolvimento do comércio (e também faria se desenvolver a divisão do trabalho, mas esse já é outro assunto). Essa propensão seria causada pela busca do interesse próprio de cada agente: eu ofereço a você o que me é excedente e que lhe interessa e, em troca, você me oferece o seu excedente que me interessa. Acontece que cada pessoa possui sentimentos morais, dos quais resulta outro interesse, ainda mais forte (ou natural, talvez): o interesse de ser aceito e respeitado pelas outras pessoas – o que Adam Smith denomina de “simpatia”. Isso quer dizer que eu tenho interesse em obter sua simpatia, que você sinta os meus sentimentos, e, por outro lado, mostrar-me simpático a você, sentir os seus sentimentos. E como estabelecer a medida da simpatia ou a razão da simpatia?
Aqui aparece outro conceito fundamental da TSM: o espectador imparcial. Minha conduta será merecedora da simpatia de outras pessoas (meus sentimentos serão aceitos) se corresponder à conduta que seria adotada pelo “grande habitante do peito humano”, como Smith o chama em determinada passagem. O espectador imparcial é um ente, se assim podemos identificá-lo, teórico: seria alguém detentor de todas as informações necessárias para julgar a minha conduta, inclusive sobre meus sentimentos e sobre os sentimentos da outra pessoa, com quem interajo. É importante considerarmos, ainda, que dentre as informações que fundamentam o julgamento do espectador imparcial estão as experiências minhas, da outra pessoa e dos demais membros da sociedade quanto às condutas adotadas em situações semelhantes. Equilibrando todas essas informações, a conclusão do “observador equidistante” seria a conduta mais apropriada (ou “conveniente”) para a situação.
Essa construção para identificar a conduta mais “conveniente” (esclareça-se: apropriada) aplica-se de forma idêntica às práticas do comércio (e à divisão do trabalho), inclusive no suprimento da demanda pela oferta e na avaliação de excedente ou escassez de produtos ou serviços. Em decorrência, a chamada lei da oferta e da procura, no pensamento de Adam Smith, jamais justificaria a cobrança do litro de água a 93 reais. No seu pensamento ainda, às instituições caberiam corrigir os desvios na conduta esperada pelo espectador imparcial, como é o caso da segurança jurídica, responsabilidade do Poder Público. A propósito, Adam Smith é um crítico contumaz do que ele chama de “opulência” e afirma categoricamente que o benefício de alguém não pode ser propiciado pelo prejuízo de outrem.
Tomando a ilustração do abusivo preço do litro de água no Litoral Norte de São Paulo, pretendeu-se aqui argumentar que para compreender exatamente os conceitos e as conclusões apresentados na “Riqueza das Nações” é imperioso recorrer aos conceitos elaborados e desenvolvidos na “Teoria dos Sentimentos Morais”. Da mesma forma, para compreender e exercer convenientemente o capitalismo (termo que não foi propriamente utilizado por Adam Smith), não é possível nem permitido abandonar as diretrizes morais que formam e informam tanto a pessoa individualmente como o convívio em coletividade; tampouco ignorar a propensão quase natural de relacionamento entre os serem humanos e a busca pela simpatia. Essa parece ser a verdadeira lição exposta por Adam Smith no seu curso de filosofia moral.
Sobre o autor:
*Edison Carlos Fernandes, doutor em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP, pós-graduado em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, professor da FGV Direito SP, sócio do FF Advogados, bacharel em Ciências Contábeis e colunista do blog Fio da Meada do Valor Econômico.
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