AVC: Cateterismo que desentope vasos do cérebro revoluciona tratamento da doença
Kris Walterson não se lembra exatamente como chegou ao banheiro, numa manhã de sexta-feira — apenas que assim que chegou lá, seus pés não o obedeceram mais. Ele se agachou e tentou levantá-los com as mãos antes de ir parar no chão. Ele não estava em pânico com o problema, nem mesmo nervoso. Mas, quando tentava se levantar, voltava a cair: batia com as costas na banheira, fazendo barulho com as portas dos armários. Ele não entendia por que suas pernas não funcionavam. Então tirou as meias felpudas que usava pensando que os pés descalços poderiam ter melhor tração no chão do banheiro. Isso também não funcionou.
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Quando sua mãe saiu do quarto para investigar o barulho, ele tentou dizer a ela que não aguentava, que precisava da ajuda dela. Mas ele não conseguia fazê-la entender e, em vez de carregá-lo, ela ligou para a emergência. Depois que ele foi colocado em uma ambulância em sua casa em Calgary, no Canadá, um paramédico o avisou que logo ouviria as sirenes. O som é uma das últimas coisas que ele lembra daquela manhã.
Walterson, que tinha 60 anos, estava sofrendo um grave acidente vascular cerebral isquêmico — o tipo de AVC causado por um bloqueio, geralmente um coágulo de sangue, em um vaso sanguíneo do cérebro. A variedade isquêmica representa cerca de 85% de todos os acidentes vasculares cerebrais. O outro tipo, o derrame hemorrágico, é um agravamento isquêmico: enquanto um bloqueio impede o fluxo sanguíneo para partes do cérebro, privando-o de oxigênio, uma hemorragia significa que o sangue é liberado, fluindo quando e onde não deveria. Em ambos os casos, muito ou pouco sangue, o resultado é a morte rápida das células cerebrais afetadas.
Quando Walterson chegou ao Foothills Medical Center, um grande hospital em Calgary, ele foi levado às pressas para o departamento de imagem, onde tomografias confirmaram a existência e a localização do coágulo. Era uma oclusão M1, significando um bloqueio no primeiro e maior ramo de sua artéria cerebral média.
Se Walterson tivesse sofrido o derrame apenas alguns anos antes, ou no mesmo dia em outra parte do mundo, seu prognóstico teria sido totalmente diferente. Em vez disso, ele recebeu um tratamento desenvolvido recentemente, estabelecido em parte pela equipe de neurologia de Foothills: a chamada trombectomia endovascular ou EVT. Na sala de angiografia do hospital, um neurorradiologista, guiado por imagens de raios-X, perfurou a artéria femoral de Walterson na parte superior da coxa interna e enfiou um microcateter em seu corpo, em direção ao cérebro. O coágulo foi extraído de sua artéria cerebral média e retirado através da incisão em sua virilha. Assim, o fluxo sanguíneo foi restaurado e logo seus sintomas desapareceram.
Estudos recentes concluem que o EVT se mostrou muito eficaz especialmente para derrames em vasos de calibre grande, graves e que têm de ser tratados rapidamente, até 24 horas depois do ocorrido. O índice de sequelas com o tratamento é de 7%, três vezes inferior ao habitual.
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Pouco mais de 24 horas depois, a memória de Walterson voltou, quando ele estava deitado em uma cama estreita na enfermaria. Ele tomou café da manhã e respondeu às perguntas dos médicos da equipe de AVC enquanto faziam suas rondas. Na tarde de domingo, ele conseguia andar pela enfermaria. Só na tarde de segunda-feira, enquanto se preparava para voltar para casa, ele perguntou à médica Kimia Ghavami, especialista em AVC, sobre o que tinha acontecido com ele na sexta, pois não conseguia se lembrar.
— Quando te conheci você estava completamente paralisado do lado esquerdo — contou-lhe a médica.
Sem o EVT, Walterson provavelmente teria enfrentado um tratamento de várias semanas no hospital e vários meses de reabilitação — no melhor caso. No pior cenário, se tivesse sobrevivido, ele seria alimentado por um tubo, passando a viver imobilizado em uma cama e internado em uma instituição de cuidados de longo prazo.
O AVC mata anualmente cerca de seis milhões e meio de pessoas em todo o mundo. É a segunda causa mais comum de morte em todo o planeta. Além do número bruto de mortes, o AVC também é uma das principais causas globais de incapacidade — muitas vezes, deixa para trás os tipos de déficits graves que forçam os entes queridos a se tornarem cuidadores em tempo integral. AVCs ainda menores e menos graves estão associados ao aparecimento de demência e muitas outras complicações.
Dado esses números, não é exagero chamar o EVT de uma das inovações médicas mais importantes da última década, com o potencial de salvar milhões de vidas e meios de subsistência. Nos EUA são feitos cerca de 60 mil EVTs por ano. Mas estima-se que o número total de americanos que poderiam se beneficiar com o procedimento é pelo menos o dobro disso.
A técnica já existe no Brasil e é feita por enquanto apenas nos grandes hospitais privados. Estima-se que sejam realizados cerca de 350 procedimentos por mês no país, segundo dados da Sociedade Brasileira de Radiologia Intervencionista e Cirurgia Endovascular (Sobrice).
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Esses desafios não atingem apenas o Brasil. Para um especialista qualificado, a extração do coágulo em si não é algo extramamente difícil — mas levar o paciente à mesa a tempo é um processo altamente complexo, uma série de etapas que exigem camadas de treinamento e repensar os protocolos que movimentam as pessoas dentro o sistema médico. O novo “tratamento milagroso” é a parte fácil. Oferecê-lo para as pessoas que precisam, em todo o mundo? Conseguir isso será milagroso.
Como o procedimento começou
Mayank Goyal, um neurorradiologista que trabalha no Foothills Medical Center e na Universidade de Calgary, pode se lembrar do momento em que o EVT começou a parecer uma solução real. A paciente era uma mulher mais jovem que ele, que havia imigrado das Filipinas para o Canadá e que trabalhava muito para enviar dinheiro para seus familiares que ainda estavam lá.
— Foi um grande derrame. Ela provavelmente não teria respondido aos medicamentos disponíveis — afirma o médico.
Então ele tentou remover o coágulo usando um novo dispositivo que não havia experimentado antes. Em 12 minutos, conseguiu tirar o coágulo. Na manhã seguinte, a mulher estava tão recuperada que queria voltar ao trabalho.
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Era 2009 e Goyal já vinha tentando trombectomias há cerca de meia década. Quando um novo método ou tratamento está em estágio inicial, os médicos geralmente só o implementam se não houver mais nada a fazer e as possíveis consequências de não fazer nada forem catastróficas. Desde o início dos anos 2000, quando a primeira versão de um dispositivo de trombectomia foi aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA, Goyal e outros pioneiros na adoção da técnica testaram em pacientes que não tinham outra esperança. A droga anti-coágulo que estava disponível para tratar derrames isquêmicos não era boa o suficiente para os maiores coágulos e os piores derrames.
— Todos perceberam que precisavam de uma solução mecânica para o problema, em vez de uma solução química para o problema — diz Goyal.
Mas os primeiros dispositivos produzidos também não funcionaram bem o suficiente. Quando um novo dispositivo destinado a obstruir o fluxo sanguíneo para um aneurisma, chamado de stent Solitaire, foi lançado, vários especialistas que trabalhavam em hospitais ao redor do mundo chegaram separadamente à mesma conclusão: pode funcionar para EVT também. Eles tentaram, e aconteceu.
— Foi como mágica, em comparação com os dispositivos anteriores — admite Goyal.
Assim que os neurointervencionistas começaram a adaptar o stent Solitaire para uso em EVT, os fabricantes de dispositivos médicos rapidamente perceberam, projetando versões específicas para trombectomia, que começaram a ser lançadas por volta de 2010.
À medida que as patentes eram registradas e o procedimento formalizado, Goyal continuou a trabalhar com a equipe de AVC em Foothills para extrair os coágulos de pacientes elegíveis.
A equipe da Foothills decidiu iniciar seu próprio ensaio clínico, que ficou conhecido como ESCAPE , com Goyal, e os neurologistas Michael D. Hill e Andrew Demchuk como os principais investigadores. Usando uma rede de colegas e ex-companheiros especialistas em AVC, que trabalharam no Canadá e em outros lugares, eles recrutaram 22 locais e estabeleceram um protocolo rígido para o estudo, enfatizando a consistência na seleção de pacientes, imagens e — acima de tudo — velocidade.
— Nós apenas martelamos as pessoas para serem rápidas — conta Hill.
A chave para um EVT bem-sucedido, eles acreditavam, era levar o paciente às pressas para um tomógrafo, verificar se o coágulo era um alvo viável para extração e retirá-lo sem demora.
O estudo foi tão bem-sucedido que foi interrompido precocemente — considerando as descobertas, não era mais ético continuar adicionando pacientes ao grupo de controle. Enquanto 29% dos pacientes do grupo de controle (que foram tratados, quando elegíveis, apenas remédios que ajudam a desfazer coágulos) sobreviveram com pelo menos uma recuperação parcial de seus déficits e conseguiram recuperar sua independência, 53% dos pacientes que receberam EVT viram os mesmos resultados positivos. E enquanto 19% dos pacientes de controle morreram, apenas 10,4% dos pacientes EVT morreram. Dado que o progresso médico costuma ser visto em aumentos de ponto decimal, esses números eram surpreendentes.
Os neurologistas de Foothills não foram a única equipe que investigou o potencial da EVT. O estudo ESCAPE decorreu simultaneamente com quatro outros ensaios importantes, um dos quais também foi liderado por Goyal. Em média, os estudos mostraram que o procedimento mais do que dobra as chances de pacientes com AVC retornarem a uma vida independente e quase triplica as chances de uma recuperação completa.
Cerca de 5 a 15 % dos pacientes com AVC são candidatos a uma trombectomia endovascular. Mas os que o recebem tendem a estar entre os casos mais graves. Com o procedimento, há uma diferença visível em como os pacientes com AVC passam pelo hospital, porque podemos mandá-los para casa mais rapidamente, destaca Hill.
Como o EVT é feito
Um EVT começa com uma agulha, perfurando camadas de pele para acessar a artéria. A agulha é seguida por um fio especialmente fabricado, flexível o suficiente para se mover através dos tecidos moles sem danificá-los, mas firme o suficiente para ser empurrado e guiado por uma das extremidades. Uma vez que o fio esteja no lugar, o intervencionista desliza uma bainha oca (como se fosse um pequeno e fino canudo) flexível por cima dele, para manter o orifício de punção aberto e fornecer acesso estável ao vaso sanguíneo. Em seguida, o fio sai e um cateter é introduzido através da bainha e guiado pelas artérias maiores até um vaso sanguíneo no pescoço. Um microcateter e um microfio ainda menores viajam dentro do maior, aninhados como bonecas russas, subindo até as artérias mais estreitas do cérebro. Uma vez que tenham avançado um pouco além do local do derrame, o microfio é retirado e substituído pelo stent retriever, que emerge do microcateter e se expande, como um jornal enrolado se abrindo, empurrando o coágulo para os lados do vaso, restabelecendo o fluxo sanguíneo e — se tudo correr como planejado — capturando o coágulo em sua malha para uma remoção completa. No estudo ESCAPE, o fluxo sanguíneo foi restaurado em 72,4% dos pacientes submetidos ao EVT.
Depois que o ESCAPE e outros estudos foram publicados, a Associação Americana do Coração prontamente formou um comitê para revisar a pesquisa e emitir um conjunto atualizado de diretrizes sobre o novo tratamento. William Powers, um neurologista veterano da Duke, era seu presidente, e ele lembra que o trabalho foi feito com rapidez incomum.
— Todos nós pensamos que aquilo era tão importante.
O grupo emitiu sua recomendação mais forte, endossando o uso de EVT em um subconjunto designado de pacientes com AVC.