BBB 21: Acusação de beijo 'performático' é sintoma de um mundo que aprendeu a desconfiar de tudo
Cinco minutos antes do pronunciamento, sem saber que era gravado, um sorridente Richard Nixon fazia piadas com a sua maquiadora diante da câmera que imaginava estar desligada. Parecia uma manhã de domingo qualquer. Bem-humorado, o homem mais poderoso do Planeta dava pitacos na maquiagem, perguntava se estava bonito, ria e provocava gargalhadas ao redor.
Quando o selo presidencial apareceu, e um locutor anunciou que estava no ar, Nixon mudou a fisionomia. Soturno e entristecido, com lágrimas nos olhos e semblante de pesar, nem parecia o mesmo personagem que brincava nos bastidores segundos antes. Ele acabava de renunciar ao cargo de presidente dos EUA.
Capturada durante a transmissão da renúncia pela TV Globo, em 8 de agosto de 1974, a mudança brusca entre os dois personagens encarnados na mesma figura era um flagrante raro de uma performance política histórica.
Qual dos dois personagens era real?
O presidente que brincava para disfarçar a tensão da renúncia ou o que fingia seriedade diante das câmeras para disfarçar seu deboche perante a opinião pública após o escândalo Watergate?
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Naquele contexto havia ainda uma linha imaginária como que a definir quando as cortinas do palco deveriam subir ou baixar. Nixon só sorriu em seu ambiente de intimidade, cinco minutos antes do anúncio, porque não sabia que era gravado; e só adotou o tom sério e compenetrado do anúncio oficial porque sabia.
Em 2021, essa fronteira já não existe. Em selfies, câmeras de monitoramento e flagrantes de terceiros, todos os passos de qualquer pessoa, não apenas autoridades e celebridades, podem ser registrados, compartilhados, divulgados, viralizados. Já não há selos oficiais para avisar quando estamos e quando não estamos no ar.
Por essa razão, existem mais pontos de conexão do que se imagina entre uma casa fechada e hiper vigiada de um reality show e o mundo exterior tomado de câmeras e transmissões em tempo real. Esse espelhamento produziu uma nuvem de desconfiança permanente sobre ações e expressões mais corriqueiras dentro e fora daquela casa. Todas levam uma questão de fundo: o que é performance e o que é real neste mundo de mediações digitais?
Nos stories que consumimos pulando de perfil e perfil com a ponta dos dedos, consciente ou inconscientemente duvidamos da veracidade da felicidade ou mesmo da tristeza alheia. A maior das dores parece emporcalhada por lágrimas de crocodilos. Os sorrisos mais abertos dos saltos ornamentais das praias paradisíacas parecem construídos para durar apenas aquele instante.
O duplo monitoramento produz desconfiança não só em que vê, mas em quem é visto. O que não é visto não acontece; o que nos define é o olhar do outro. Por isso passamos a conviver o tempo todo com milhões de conterrâneos autoproclamados juízes.
No domingo 7, soube que um dos participantes do BBB 21 beijou um concorrente durante uma festa na casa e pediu para sair no dia seguinte. A decisão ocorreu após ser alvo de hostilidades dos parceiros, o que levou os espectadores a identificarem no seu isolamento elementos claros de tortura psicológica.
Após o beijo, Lucas Penteado assumiu ser bissexual. O que levou uma postulante ao prêmio milionário a classificar o beijo como uma performance da qual ela não queria ser palco. Foi o estopim para que o participante pedisse para deixar a casa.
Desde então não se fala de outra coisa no país que transformou o Twitter na ágora do pensamento contemporâneo. Discussões profundas e sofisticadas foram produzidas a partir do episódio. “Prazer é direito numa relação consensual entre adultos, respeito dos demais é dever”, escreveu Renan Quinalha, advogado e professor de direito, em artigo para a Folha de S.Paulo.
Como ele mesmo definiu, parece ser um contrassenso imaginar que alguém tenha assumido a bissexualidade apenas para performar e ganhar simpatia de espectadores e participantes do programa como estratégia. Afinal, estamos em um país que mais mata pessoas LGBTs no mundo.
Mas a camada de desconfiança desse mundo hiper vigiado e compartilhado o tempo todo parece ter minado a capacidade de e reconhecer o óbvio: toda maneira de amar vale a pena, como dizia a música.
As camadas de exclusões, preconceitos e violências expostas e interpostas naquela casa, assim como a responsabilização de atos e omissões de produtores e competidores, ainda renderão muito assunto. Este texto não tem a pretensão de emitir juízos sobre quem é quem.
Quer apenas chamar a atenção para o fato de que a vida em rede nos transformou não só em sujeitos potencialmente performáticos em potencial, mas em sujeitos desconfiados e detentores de lupas e outros objetos de dissecação para identificar o que é fake e o que é real nas fronteiras borradas e tomadas por conflitos dos relacionamentos humanos. De maneira cínica, reivindicamos o status de curadores do afeto alheio, dispostos a identificar supostos elementos de artificialidade nos passos alheios. Pior: não basta só posar de caçadores de performance, erros, contradições humanas; é preciso expor e julgar em público o tempo todo. O contrário disso é se omitir e não há nada mais cancelável do que omissão.
Levado ao campo político, esta postura persecutório com um pé na paranoia nos leva a desconfiar, com ou sem razão, dos sujeitos que produzem e se reconhecem como personagens de realities shows públicos e particulares em tempo real em lives, pronunciamentos, encontro com apoiadores, capacidade de produzir e virar notícia, imagens e memes até quando resolvem apostar corrida em pista de atletismo em visita oficial.
Luz, câmera e ação já não avisam quando podemos ou não performar. Elas estão ligadas o tempo inteiro e já não permitem dizer quem somos e o que queremos sem a imediata intervenção de quem aprendeu a ver estratégia de um jogo de perde-e-ganha até quando suspiramos com a ilusão de não sermos punidos por isso.
No mundo em que tudo se registra e tudo se edita, um beijo jamais será só um beijo, assim como um sorriso jamais será só um sorriso e uma lágrima jamais será só uma lágrima. Serão razões para condenação prévia de quem desconfia de tudo e de todos.
A pergunta de fundo parece se perder de vista quando, diante das demonstrações mais intensas de afeto, já não sabemos o que é real e o que é consciência de estar sendo filmado. A pergunta que vai impedir a autorregulação dos afetos pela própria régra que nos desumaniza, patrulha e despotencializa não é essa; é quem somos nós para dizer, acusar, julgar e condenar?