Cantada primata, capitalismo selvagem

Os homens tĂȘm que compreender uma verdade simples: nĂŁo devem se dirigir a mulheres estranhas com cantadas genĂ©ricas. NinguĂ©m estĂĄ “autorizado” a fazer isso. NĂŁo tem graça. NĂŁo faz sentido. Na rua, nĂŁo hĂĄ cantada divertida nem sedutora nem inteligente, por uma razĂŁo simples: toda cantada de rua (mesmo as mais criativas) Ă© primitiva e opressiva em seu nĂ­vel essencial.

Obviamente as pessoas podem se encantar com estranhos/as – e podem tentar aproximaçÔes. Mas as cantadas de rua (quase) nunca tĂȘm a ver com isso. NĂŁo sĂŁo aproximação. Pelo contrĂĄrio, sĂŁo uma mera mijada territorial, o oposto de uma aproximação. Significam “eu sou homem – e uma mulher ‘gostosa’ (seja lĂĄ o que isso for) passando na ‘minha’ (?) ĂĄrea simplesmente exige minha manifestação de dono”. O fiu-fiu na verdade nĂŁo Ă© uma manifestação de sedução Ă s mulheres. É uma agressĂŁo Ă s mulheres em honra... dos outros homens, da condição masculina.

Porque os homens se acham donos do territĂłrio e, por extensĂŁo, das fĂȘmeas que nele habitam e transitam. Claro que hĂĄ algumas mulheres que se excitam com isso. Mas a excitação delas nĂŁo vale a aporrinhação de todas as outras. Foi isso que a lei belga entendeu, e estabeleceu multa equivalente a quantias de R$ 150 a R$ 3 mil reais.

Porque na Bélgica? Porque lå a estudante Sofie Peeters fez como trabalho de conclusão de curso o documentårio Femme De La Rue, em que ela caminha por um bairro pobre de Bruxelas, Anneeseens (o bairro em que morava), sofrendo seguidas cantadas e manifestaçÔes de homens estranhos. O filme provocou um debate nacional, repercutindo na Europa toda, e no mundo.

O líder muçulmano local Abu Haniefa lançou um vídeo em que acusa Sofie de provocar os homens ao andar pelas ruas “nua como uma prostituta”, e “pintada como uma palhaça”. Não preciso explicar que Sofie no filme está vestida normalmente, andando em um bairro da capital de seu país.

O vĂ­deo de Haniefa me lembrou uma piada, a de um homem que faz um teste de Rorschasch (aquele que tem manchas abstratas), e Ă© diagnosticado como obcecado sexual. AĂ­ ele diz “me mostram um monte de imagem de safadeza, e querem que eu pense no quĂȘ?”.

No Rio de Janeiro, foi divulgado na terça-feira o vĂ­deo em que a estudante Yasmin Ferreira, de 21 anos, discute com um porteiro de Copacabana que a constrangia frequentemente, no seu caminho para a faculdade. A cena foi registrada pela repĂłter d’O Globo ClĂ©o GuimarĂŁes, e ganhou as redes. Em geral, a explosĂŁo da moça, bastante sincera e bem-articulada, suscitou apoio.

Curiosamente, o nosso “lĂ­der muçulmano” que veio tentar relativizar a legitimidade da reação de Yasmin foi uma mulher, a blogueira Juliana Cunha, do IMS. Juliana tenta localizar na fala de Yasmin “marcadores de classe”, como a referĂȘncia Ă  profissĂŁo de porteiro, ao fato dele estar no local de trabalho, Ă  possibilidade de reclamar com seus empregadores.

Para Juliana, “a cantada (...) que parte de um homem negro e pobre em direção a uma mulher branca e rica tem menos a ver com a expectativa de estabelecer um enlace sexual e mais a ver com uma disputa acirrada entre dois privilĂ©gios. A cantada Ă© a concretização bruta de um conflito social que permeia boa parte de nossas relaçÔes cotidianas (...) AtravĂ©s dela, o porteiro se rebela contra a condição de esterilidade e invisibilidade social que lhe Ă© imposta, atacando o lado fraco do status quo (ou seja, a mulher do branco, a mulher do rico) e deixando claro para ela que, mesmo porteiro, ele permanece homem”.

Genericamente, a anĂĄlise atĂ© procede. Mas nĂŁo resolve o problema de mulheres que sĂŁo assediadas – por pobres e ricos. Como diz minha amiga DesirĂ©e Furoni, nos comentĂĄrios do blog, “a mulher negra e moradora da periferia tambĂ©m Ă© vĂ­tima de assĂ©dio em espaços pĂșblicos (...) E basta ser mulher para perceber engravatados assediando, playboys assediando, brancos e ricos humilhando publicamente mulheres. O machismo ainda Ă© o

‘privilĂ©gio’ que une classes sociais, culturas e posiçÔes polĂ­ticas diversas. Talvez se a autora eliminasse em si a visĂŁo branca, classe mĂ©dia e acadĂȘmica de luta de classes, enxergaria as nuances da violĂȘncia contra todas as mulheres, e nĂŁo apenas a visĂŁo binĂĄria ‘moça branca X porteiro’”.

E, como bem lembrou a escritora feminista NĂĄdia Lapa, Simone de Beauvoir jĂĄ dizia na introdução de O Segundo Sexo: "Mesmo o mais medĂ­ocre dos homens se acha um semideus perto de uma mulher". NĂŁo me parece que Simone tenha escrito isso em defesa dos homens medĂ­ocres. E nĂŁo Ă© justo que eles garantam sua sobrevivĂȘncia psĂ­quica cassando (e caçando) a sobrevivĂȘncia psĂ­quica das mulheres.

Infelizmente DesirĂ©e tem razĂŁo. No jogo patriarcal, hĂĄ uma sĂł regra: o jogador 1 ganha, o jogador 2 perde. E o jogador 2 Ă© a mulher – seja Marilyn Monroe ou a dona Maria. Se a moça Yasmin diz ao porteiro que nĂŁo Ă© Ă©tico fazer isso (cantadas e piadas grosserias) em ambiente de trabalho – ou seja, nĂŁo compara a opressĂŁo que o porteiro (supostamente) sofre na sociedade de classes com a opressĂŁo que ela mesma sofre dele, Ă© porque ela estĂĄ preocupada com uma questĂŁo anterior, mais bĂĄsica, mais Ăłbvia, mais simples e mais urgente.

A de que uma cantada de rua nunca Ă© legal. Na BĂ©lgica jĂĄ sabem. Quem quer paquera que procure um espaço onde a paquera Ă© pactuada, ou seja, quem estĂĄ lĂĄ Ă© para isso mesmo. E a mulher que cria coragem para vir a pĂșblico romper o ciclo de silĂȘncio e tolerĂąncia com essa forma de abuso em pĂșblico nĂŁo deveria ser patrulhada. Deve Ă© ser saudada.

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