Mashup: Emicida versus Yoko Ono

Quando me tornei um apaixonado completo pela obra musical da japonesa Yoko Ono, hĂĄ poucos anos, uma mĂșsica em especial me impressionou profundamente: "I Want My Love to Rest Tonight", que a ex-esposa do ex-Beatle John Lennon canta no ĂĄlbum Approximately Infinite Universe, de 1973. Essa canção volta com tudo Ă  minha lembrança agora, enquanto galopamos no "escĂąndalo" da hora, sobre "Trepadeira", um rap com algum teor misĂłgino que integra o excelente ĂĄlbum independente O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, do paulistano Emicida.

O rap-samba-rock "Trepadeira" me soou, à primeira e segunda ouvidas, um poema brilhante que usa um jardim de flores, xaxins, plantas, årvores, arbustos, legumes e outros "bichos" para falar de uma moça que, bem, gosta muito de sexo.

As citaçÔes verdes e coloridas, Ă  lĂ  Itamar Assumpção, espalham ramas pelo chĂŁo: margarida, rosa, grampola, camĂ©lia, bromĂ©lia, ipĂȘ, orquĂ­dea, samambaia, capim, girassol, violeta, flor de laranjeira, tulipa, chuchu, cravo, erva-daninha, amor-perfeito, jilĂł, maria-sem-vergonha, trevo-de-quatro-folhas, jasmim, magnĂłlia, vitĂłria-rĂ©gia, brinco-de-princesa, azaleia, costela-de-adĂŁo, comigo-ninguĂ©m-pode...

Um verso em especial estĂĄ sendo interpretado como misĂłgino e incitador de violĂȘncia contra as mulheres: a moça"merece era uma surra de espada-de-sĂŁo-jorge". Espada-de-sĂŁo-jorge, caso alguĂ©m nĂŁo se lembre, Ă© uma planta de folhas compridas e pontudas. Emicida estĂĄ aqui se arriscando por terreno perigoso. O narrador sugere uma "surra" de flor Ă  namorada "trepadeira" que, talvez, o tenha deixado na dor-de-cotovelo ("cĂȘ me quis, salgueiro chorĂŁo").

(Nunca Ă© demais lembrar que estamos em terreno pantanoso, o da canção popular, onde homens jĂĄ disseram monstruosidades mĂșltiplas como as de "Minha Nega na Janela", do tambĂ©m paulistano Germano Mathias: "Eta, nega, tu Ă© feia que parece macaquinha/ olhei pra ela e disse:/ 'vĂĄ jĂĄ pra cozinha'/ dei um murro nela e joguei ela dentro da pia/ quem foi que disse que essa nega nĂŁo cabia?".)

Mas o que isso tudo teria a ver com a distante "I Want My Love to Rest Tonight" de Yoko Ono? Fiquei bem confuso quando prestei atenção pela primeira vez na letra da "bruxa" que adoråvamos caçar por ter sido o pomo da discórdia entre os amados meninos Beatles.

Me pareceu, de cara, uma canção misógina escrita por uma mulher, uma mensagem de perdão paternalista (ou seria maternalista?) para proteger e justificar as atitudes de um macho machista: "Irmãs, não culpem demais o meu homem/ eu sei que ele estå fazendo o melhor que pode/ conheço o medo e a solidão dele/ ele não consegue fazer nem mais, nem menos/ ele foi criado por nós, mulheres/ e pelo mundo que o mandou ser um homem". Ora, então deveríamos proteger um misógino (por exemplo, o Emicida, ou eu próprio) por ele manifestar alguma variedade de repulsa ao sexo oposto?

A letra de Yoko nunca mais parou de ribombar na minha cabeça: "IrmĂŁs, nĂŁo culpem demais o meu homem/ (...) ele foi ensinado pela mĂŁe a nunca confiar em garotas/ ele foi ensinado pelo pai a nunca derramar lĂĄgrimas" - imagine entĂŁo se ele resolver ter a ousadia de dar um selinho na boca de um amigo do mesmo sexo! - "ele vĂȘ garotas caçando superastros/ enquanto o homem delas bebe no bar".

O refrĂŁo da "bruxa" Ă© ainda mais desconcertante, e aparentemente comodista (maternalista?) - mas quase dĂĄ para ouvir uma mulher cantĂĄ-lo para o marido ou namorado, uma mĂŁe cantĂĄ-lo para o filho, uma amiga cantĂĄ-lo para um amigo: "Eu quero que meu homem descanse esta noite/ para que ele consiga encarar o mundo amanhĂŁ".

Quanto mais repito mentalmente todos esses versos de Yoko, mais me convenço de que se trata de uma crítica sutil de uma mulher às mulheres, mas também de uma mulher aos homens. Qual é afinal a delícia masculina de ser esta montanha de fragilidades disfarçada atrås da fortaleza rígida de um iceberg? E o que fazemos, mulheres e homens, quando um rapaz tenta se fragilizar chamando mulheres de flores ou dando um beijo na boca de um amigo?

Não sei se a "Trepadeira" de Emicida chega tão fundo quanto a estocada de Yoko. Mas a reação fóbica que a canção do rapper (negro) estå suscitando me leva diretamente à conclusão gentil e cruel de "I Want My Love to Rest Tonight": "Se todos nós soubéssemos que ninguém deveria ser humilhado/ mas que a sociedade deve ser humilhada/ nós poderíamos ficar juntos outra vez/ e dirigir nossas energias a transformar o mundo./ Nós todos somos parceiros cegos e paralisados/ frustrados por não sermos o presidente dos Estados Unidos./ Nós não sabemos lidar com nós mesmos/ nem amar nossos parceiros por serem eles mesmos".

Sei lĂĄ, entende? O que serĂĄ que estou tentando dizer quando promovo um mashup maluco entre as mulheres-plantas de Emicida e os meninos-homens de Yoko? Talvez queira lhe pedir que nĂŁo jogue o poderoso e talentoso rapper na lata de lixo com a misoginia dele, e que nem condene o(a)s racistas ao inferno com o racismo deles (nosso). Em que serĂĄ que transformarĂ­amos nossos "inimigos" se, em vez de tentar isolĂĄ-los (por vezes linchĂĄ-los), tentĂĄssemos simplesmente trazĂȘ-los para perto de nĂłs?

P.S.: Se der, por favor, ouça depois disso tudo a sensacional faixa de encerramento de O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui , "Ubuntu Fristaili". Trata de liberdade religiosa (entre outras), e tem o auxílio vocal maravilhoso d(e uns marmanjos e d)as magnólias Fabiana Cozza, Juçara Marçal, Tulipa Ruiz e Elisa Lucinda. De arrepiar.

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