O bairro do Divino, o baile charme e Madureira
Rio de Janeiro, zona norte, bairro de Madureira. Viaduto NegrĂŁo de Lima, Espaço Cultural Rio Charme. Ă madrugada de sĂĄbado para domingo, hora de começar o tradicional baile charme de Madureira. Avenida Brasil, a atual novela das 21h, se passa no bairro fictĂcio do Divino, onde acontece um baile charme â Ă© desse ambiente e desse caldo cultural que falamos, embora tudo apareça camuflado na tela da Rede Globo.
Atravessamos a avenida Brasil real para chegar, numa viagem de cerca de 35 minutos, se nĂŁo houver trĂąnsito. Estamos num dos epicentros do movimento black da zona norte carioca, mais especificamente num bairro que jĂĄ deu ao Brasil o inventor do samba-rock-soul-funk-etc., Jorge Ben Jor (Ă Ă©poca Jorge Ben), como ele prĂłprio nos ensinou num samba-funk de 1980: "A cegonha me deixou em Madureira/ de presente para minha mĂŁe, SĂlvia Lenheira".
Quem nos traz Ă© Marcello Silva, filho de Madureira, morador do eixo Rio-Nova York, entusiasta do movimento charme, lĂder do grupo Dughetto â no qual mistura, sem preconceitos, rap, funk batidĂŁo, charme, rock, eletrĂŽnica, pop carioca Ă moda de Lulu Santos, mĂșsica negra do Brooklyn nova-iorquino.
O baile acontece desde 1993, segundo conta Marcello. Vestido a rigor, CĂ©sar AtaĂde, o criador, circula e distribui panfletos do baile pela praça de alimentação improvisada pelos ambulantes embaixo do viaduto â caldo de mocotĂł, angu com rabada, sopa de siri, cada prato mais apetitoso que o outro. Elegante como ele sĂł, CĂ©sar lembra um patrono de escola de samba, e nĂŁo Ă© Ă toa: em Madureira tambĂ©m nasceram as escolas de samba Portela, de Paulo da Portela e Paulinho da Viola, Candeia e Clara Nunes, e ImpĂ©rio Serrano, de Mano DĂ©cio da Viola e Silas de Oliveira, de Dona Ivone Lara e Elza Soares.
Mais ou menos ao ar livre, embaixo do viaduto, sem paredes que nos separem dos ĂŽnibus e carros que passam ali fora, o baile ocupa um terreno irregular, onde durante a semana funciona um estacionamento. O vendedor de CDs e DVDs do baile se divide entre filmes (Fala Tu) e discos de rap (Dexter) nacionais e as Ășltimas novidades do rhythm'n'blues. Kanye West, 50 Cent, Alicia Keys, a poderosa indĂșstria norte-americana de black music.
SĂŁo esses os sons que tocam na festa, de resto mais ou menos hostil a brasilidades â a Portela Ă© logo ali, mas os dois movimentos culturais nĂŁo se espelham um no outro, embora ao forasteiro pareçam cara e coroa de uma mesma e valiosa moeda.
As coreografias malemolentes, elegantemente sensuais, sĂŁo a grande estrela da festa. NĂŁo sĂŁo como os passos ensaiadĂssimos de Suelen, Darkson, Olenka, Silas e outros personagens do Divino de ficção. Em Madureira, hĂĄ uma sincronia de fundo, mas a beleza do baile charme da vida real surge de certa descontinuidade, do fato de cada dançarino ostentar identidade e indumentĂĄria prĂłprias, individuais. O todo harmĂŽnico brota das diferenças, nĂŁo do ensaio marcial exibido na novela.
Avenida Brasil, por sinal, Ă© tema controverso, ao mesmo tempo amado e odiado, nas rodas do baile charme de Madureira. "O meu lugar/ Ă© caminho de Ogum e IansĂŁ/ lĂĄ tem samba atĂ© de manhĂŁ/ uma ginga em cada andar", canta outro filho de lĂĄ, Arlindo Cruz, no lĂrico e lindo samba "Meu Lugar" (2007), aproveitado na trilha sonora da novela. "O meu lugar tem seus mitos e seres de luz/ Ă© bem perto de Oswaldo Cruz/ Cascadura, Vaz Lobo, IrajĂĄ/ o meu lugar/ Ă© sorriso, Ă© paz e prazer/ o seu nome Ă© doce dizer:/ Madureira".
A TV lĂder de audiĂȘncia do Brasil, como lhe Ă© hĂĄbito, violenta a razĂŁo e faz seu contratado Arlindo Cruz adaptar a letra de "Meu Lugar", para caber na Avenida Brasil fictĂcia. "O meu lugar/ Ă© sorriso, Ă© paz e prazer/ o seu nome Ă© doce dizer: Ă© Divino", canta, em versĂŁo globo-turbinada, o sambista-chefe do programa Esquenta, de Regina CasĂ©, antes de tentar salvar a lĂłgica recitando um adendo: "Bem perto de Madureira!".
Marcello ressente-se da deturpação Ă mesma medida que aprecia a visibilidade indireta que a Globo confere a Madureira e ao baile charme. Gosta e desgosta da promoção compulsĂłria. "Melhor nem falar sobre isso", observa, diante do assunto da modestĂssima presença de atores de pele negra na Madureira inventada pela Rede "nĂŁo somos racistas" Globo.
A juventude dança, alheia a tais vaivĂ©ns. O que acontece ali, no duro, Ă© ponto de uniĂŁo, orgulho black exposto em arranjos de cabelos, roupas e passos de charme, coletividade com individualidade. Impressos nos sons e nos gestos hĂĄ a mistura: charme, funk, hip-hop, samba-rock, samba-funk, capoeira, partido alto, pagode, candomblĂ© â por mais que a brasilidade explĂcita de Martinho da Vila e (por que nĂŁo?) Tim Maia nĂŁo seja dona do rito. O nĂșcleo de tudo, seja como for, Ă© identidade â identidade negra, que vocĂȘ nĂŁo vai compreender de verdade se nĂŁo pertencer ao movimento ou se nĂŁo testemunhĂĄ-lo de perto, do meio, de dentro do vulcĂŁo.