“Sistema distrital pode consolidar pequenos feudos”, diz cientista político
Na última quarta-feira, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, em caráter terminativo, o projeto que institui o voto distrital para a eleição de vereadores nos municípios com mais de 200 mil eleitores do Brasil. A proposta, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), deve ainda ser analisada pela Câmara, mas já levanta uma série de questionamentos.
Hoje, pelo modelo atual, a eleição de vereadores segue o sistema proporcional, no qual os votos do partido ou coligação são levados em conta na distribuição dos candidatos eleitos. No sistema distrital, o voto é majoritário: elege-se o candidato que recebe o maior número de votos em determinado distrito.
Segundo Serra, a mudança ajudaria a reduzir o número de candidatos, os custos de financiamento das campanhas e aumentaria a proximidade entre os políticos e os eleitores de determinada localidade.
Para Leonardo Sangali Barone, cientista político e doutor em Administração Pública e Governo pela FGV-SP, nada é tão simples. “Não há fórmula mágica que resolva o problema da representação”, diz. “Essa conexão depende da capacidade dos partidos políticos mobilizarem eleitores e produzirem maior identificação com sua agenda e, eventualmente, de atraírem novos membros.”
Segundo o especialista, de fato haveria menos candidatos no Brasil com o distrital misto, mas ele ressalva: “Adianta alguma coisa ficar mais fácil votar em um distrito menos competitivo? Se isso fosse verdade, todo mundo estaria satisfeito com eleições para prefeito”.
Ele aponta para os riscos de os distritos se converterem em “pequenos feudos” e cita exemplos de locais onde a regra se tornou um problema. “Na Índia, os partidos não conseguem vencer criminosos locais e, ao invés de competir contra eles, acabam incorporando-os aos seus quadros.”
Barone critica a ideia de que o incômodo coletivo com a classe política tenha origem na regra eleitoral. “Este pressuposto é falso e a alteração para o distrital misto terá provavelmente um resultado frustrante.”
Confira abaixo a entrevista:
- O sistema de voto distrital, recentemente aprovado no Senado, é a solução para aproximar o eleitor de seu representante no Congresso?
Leonardo Sangali Barone: Certamente não. Aproximar o eleitor do representante tem muito pouco a ver com a regra eleitoral e o mais provável é que a mudança não tenha o efeito desejável – e tampouco consequências desastrosas. A conexão depende da capacidade dos partidos políticos mobilizarem eleitores e produzirem maior identificação com sua agenda e, eventualmente, de atraírem novos membros. Há inovações institucionais possíveis para aproximar o cidadão do Estado - conselhos, orçamento participativo, etc - e o Brasil tem avançado bastante por este caminho, sobretudo nos governos locais. Mas não há fórmula mágica que resolva o problema da representação. Regra eleitoral diz respeito à competição entre partidos.
É importante lembrar que os distritos eleitorais no Brasil teriam necessariamente de ser bastante grandes em qualquer versão do sistema distrital, com algumas centenas de milhares de eleitores (por exemplo, do tamanho de Vitória-ES). Se já temos problemas de representação em eleições para prefeito em municípios pequenos - que funcionam como distritos de maioria simples onde não há segundo turno - qual é a evidência de que uma fórmula distrital no Brasil resolveria o problema de representação para distritos necessariamente grandes? Nenhuma
- É possível apontar prós e contras desse sistema?
LSB: O problema central de qualquer regra eleitoral com distritos de uma cadeira e maioria simples é a criação de distritos não competitivos e/ou a consolidação de pequenos feudos. Por exemplo: nos Estados Unidos, que adota um sistema distrital, os eleitores democratas sequer vão às urnas em distrito de dominação republicana e vice-versa. Na Índia, os partidos não conseguem vencer criminosos locais e, ao invés de competir contra eles, acabam incorporando-os aos seus quadros. Já há estados no Brasil em que a competição é problemática por conta do domínio de algumas famílias ou grupos políticos na regra atual. Distritos menores vão provavelmente agravar este problema criando “cadeiras seguras” para alguns partidos.
As correções pela proporcionalidade que o distrital misto oferece ajudam a minorar os problemas da exclusão de partidos que não são competitivos em nenhum distrito, mas que são preferidos por uma parcela relevante do eleitorado. Entretanto, o “misto” não resolve o problema que os distritos de maioria simples criam. E, pior, trazem problema de outro sistema. Na Alemanha, as lideranças partidárias garantem seu assento escolhendo para si o topo da lista fechada usada para corrigir a proporcionalidade.
Um apelo importante dos sistemas majoritários é a redução do número de candidaturas. Sem dúvida haveria menos candidatos no Brasil com o distrital misto. Ficaria mais fácil votar, o que é irrelevante. Adianta alguma coisa ficar mais fácil votar em um distrito menos competitivo? Se isso fosse verdade, todo mundo estaria satisfeito com eleições para prefeito.
Por fim, menos candidatos poderia significar menos gasto de campanha. Mas isso não necessariamente seria verdade. As candidaturas caras no Brasil são para o Executivo. A maioria das candidaturas ao Legislativo hoje não gasta quase nada porque não são competitivas. Provavelmente os partidos simplesmente realocariam os recursos que gastam com muitos candidatos para se concentrar em seus candidatos mais competitivos. Não há garantia que as campanhas fiquem mais baratas.
Veja que é possível apontar uma lista de defeitos sobre todos os sistemas eleitorais. Mas o caminho das reformas em outras democracias tem sido adotar alguma proporcionalidade e não voltar a distritos de maioria simples.
No Brasil há uma aberração com a qual precisamos lidar, que é distrito com muitas cadeiras em disputa. São distritos grandes, como o de São Paulo, por exemplo, que permitem o efeito “puxador de voto”. Esta aberração me parece dar combustível às propostas de reforma. Mas se este fosse problema, as soluções mais simples seriam ou redividir os distritos, como SP, MG, RJ, BA, RS, PR, PE e CE, por exemplo, em distritos menores, ou mesmo reduzir o número de parlamentares na Câmara dos Deputados.
O efeito puxador de voto é algo bastante limitado. Não é um problema nas Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores. Não acontece na maioria dos estados. Não é um problema sério da regra atual. Acontece em alguns poucos estados e apenas para Câmara dos Deputados. Estamos falando de uns poucos parlamentares entre os 513. É algo residual. As críticas ao Congresso Nacional não tem nada a ver com os “puxadores de voto”, mas com os partidos, as lideranças e os parlamentares mais ordinários.
- Poderia citar exemplos de lugares onde a regra funciona ou não funciona?
LSB: Não faz sentido pensarmos se uma regra eleitoral funciona ou não. Há diferentes consequências com a aplicação de cada uma delas. Aliás, esta é a armadilha do debate sobre mudança da regra eleitoral no Brasil: parte-se do pressuposto que há um mal funcionamento no sistema proporcional de lista aberta, ou melhor, de que o incômodo coletivo com a classe política e seu comportamento tem origem na regra eleitoral. Este pressuposto é falso e a alteração para o distrital misto terá provavelmente um resultado frustrante, ainda que dificilmente produza um desastre.
- Outro ponto em discussão é a eventual proibição do financiamento empresarial de campanhas. Você acha que até a próxima eleição haverá mudanças? A proibição de doações empresariais é um bom caminho?
LSB: O debate sobre o financiamento de campanha também tem seus vícios e falsos pressupostos. O primeiro deles é achar que a corrupção do Estado brasileiro tem origem na relação entre partidos e empresários, ou ainda, que o financiamento de campanha gera a corrupção. E o segundo é que a proibição da doação elimina a corrupção desta relação. É ingênuo acreditar em ambos.
Meu palpite, puro palpite mesmo, é que haverá pelo menos alguma alteração no financiamento de campanha, seja limitando ou proibindo doações empresariais. Se servir para tornar as campanhas mais baratas, melhor. Mas não é possível prever se os resultados serão de verdade positivos.
O principal problema do financiamento de campanha talvez não esteja na possibilidade de doações empresariais, mas no controle que temos sobre as relações Estado e empresas, que acabam necessariamente passando pelos partidos. Falta transparência e controle. Os tipos de reforma que reduzem corrupção podem não ter muito a ver com financiamento de campanha (certamente não tem nada a ver com a regra eleitoral).
- Na sua opinião, como este debate está sendo conduzido? Corremos mais riscos de avançar ou de apenas ecoar a lei de Tancredi, de O Leopardo: “É preciso mudar tudo para que tudo permaneça como está”?
LSB: Partidos políticos são atores estratégicos e só propõem mudanças quando calculam que os efeitos das mudanças lhe são favoráveis. A insatisfação geral com a classe política é um dos motores da mudança, mas os partidos vão pressionar para que as mudanças não prejudiquem suas chances de serem eleitos e governarem. Precisam apresentar uma reforma, e, ainda que a mudança do sistema eleitoral seja inócua, é a reforma que podem apresentar.
Imagem: Os senadores Aloysio Nunes Ferreira (E) e José Serra (D) defendem o voto distrital na eleição para vereadores / Moreira Mariz/Agência Senado