Claudia Leitte e os arianos
Em janeiro de 2001, pouco mais de dez anos atrĂĄs, Carlinhos Brown protagonizou cena cĂ©lebre ao tomar chuva de garrafas e outros objetos enquanto se apresentava no Rock in Rio. Era noite de Oasis e Guns nâ Roses, e o pĂșblico roqueiro deu demonstraçÔes diretas de que desaprovava a baianidade do artista.
Em setembro de 2011, pouco mais de uma semana atrĂĄs, Claudia Leitte fez sua estreia no Rock in Rio. Ela nĂŁo disputou atençÔes diretas com Guns nâ Roses: foi escalada numa noite mais pop, entre artistas como Rihanna (uma das vĂĄrias claudias-leitte norte-americanas presentes no festival) e Elton John. NĂŁo tomou garrafada, mas tampouco a apresentação passou em louras nuvens de tranquilidade. AtravĂ©s do consagrado recurso da vaia, parte do pĂșblico demonstrou sua desaprovação pela baianidade da cantora.
Era apenas o começo. A versĂŁo 2011 do festival que leva o rock no nome estava naquele primeiro dia abrindo, via redes sociais, um ciclo muita discussĂŁo circular sobre o que Ă© rock e o que nĂŁo Ă© â especialmente se o artista em questĂŁo se chamasse Claudia Leitte e fosse baiano, ou nordestino.
Como demonstrou o jornalista Eduardo Nunomura no Farofafå, o site de jornalismo musical brasileiro que ele e eu mantemos no ar a duras penas, a passagem do Metallica pelo festival detonou outra guerra campal de esquisita polarização tipo "rock versus Nordeste".
Em 2011, não choveram garrafas, mas sim ofensas contra nordestinos via Twitter. Começou poucas horas após a noite metaleira do Rock in Rio, quando fãs brasileiros de forró moveram uma campanha para tirar o Metallica dos trending topics twitteiros, com a hashtag #SouForrozeiroComOrgulho. Deu certo. O orgulho forrozeiro pulou rapidamente para o primeiro lugar dos TTs.
âPor favor nordestinos e forrozeiros antes de me xingarem vĂŁo para a escola serem alfabetizadosâ, alguĂ©m xingou muito no Twitter, sem usar vĂrgulas e sem temer a generalização antiforrozeira â e antinordestina. O fenĂŽmeno nĂŁo tem nada de inĂ©dito, nĂłs jĂĄ vimos esse filme em outras ocasiĂ”es, inclusive bastante recentes.
A rigor, Claudia Leitte nem tinha nada a ver com isso â afinal, axĂ© nĂŁo Ă© forrĂł (ou Ă©?). Mas talvez tivesse. CoincidĂȘncia ou nĂŁo, no dia seguinte a cantora parece nĂŁo ter suportado mais a onda interminĂĄvel de crĂticas e zombarias de que virou alvo preferencial, e usou seu blog para esboçar uma reação tambĂ©m via internet Ă chuva simbĂłlica de impropĂ©rios. Ă Ăłbvio que, em retorno, passou a ser dupla e tripla e multiplamente criticada.
A hostilidade que o pop baiano costuma provocar, paralelamente a seu imenso sucesso, Ă© perturbadora. Os hostis, via de regra, tĂȘm olhos e ouvidos embotados, a ponto de nem sequer escutar os argumentos vindos do lado contrĂĄrio. Os detratores de Claudia Leitte nĂŁo parecem ter conseguido entender os argumentos da artista, dez anos mais maduros que os de Carlinhos Brown no longĂnquo 2001.
NĂŁo vi, por exemplo, quem se dispusesse a tentar interpretar â sem hostilidade gratuita â a seguinte frase escrita por ela: âProcurem no Google sobre a histĂłria de um ariano que se achava superior aos judeus...â.
O mundo pĂłs-redes sociais Ă© complexo o suficiente para dar nĂł nos neurĂŽnios dos mais atentos. Loura, aparentemente ariana, Claudia Leitte usou de ironia para criticar o arianismo reacionĂĄrio do rock, dos roqueiros e dos fĂŁs do gĂȘnero. Jimi Hendrix e Patti Smith Ă parte (quantos mais?), o rock, mais de 50 anos apĂłs ter sido parido, ainda Ă© predominantemente branco, macho e primeiro-mundista.
Inventado por gente da cor (e do sexo) de Carlinhos Brown, como Chuck Berry e Little Richard, o rock rapidamente se branqueou, e até hoje não då sinais consistentes de se repretejar, também não muito se feminilizar. Para quem não pertence à caricatura branquela e machona, melhor é ir cantar axé, samba, MPB, rhythm'n'blues ou quetais. Vå ser Shakira, não Freddie Mercury.
Ora sutil, ora nem tanto, nossa Lady Gaga pĂłs-tupiniquim foi na jugular da intolerĂąncia branca e macha que ama colocar o rock num patamar supostamente superior ao de todo o resto da mĂșsica popular: âO desrespeito Ă© mais fĂĄcil de ser tolerado porque Ă© uma atitude rock and roll? NĂŁo seria isso alienação? Liberdade Ă© respeitar. Liberdade Ă© conviver com as diferençasâ.
Ela nĂŁo foi explĂcita aqui, mas estava chamando muitos vassalos das cortes do rock daquilo que eles de fato costumam ser: autoritĂĄrios. Deve valer para roqueiros around the world, mas imagine se, alĂ©m de tudo, o roqueiro for brasileiro, daqueles que tĂȘm âalergiaâ Ă cor bronzeada da pele de nossa gente, acham que estupro Ă© prĂȘmio para mulher "feia" e acreditam piamente que o rock brasileiro - ou seja, o rock que eles prĂłprios produzem - Ă© uma porcaria.
Mesmo em 2011, ciceroneamos mr. Axl Rose e mr. Elton John com todas as honras, enquanto achincalhamos mulheres, nordestinos, brasileiros. E ainda ficamos crentes de que estamos abafando ao nos chamar a nĂłs mesmos de ratazanas de esgoto sul-americano.
O espelho distorcido diante de nossos olhos embotados nos impede, por exemplo, de imaginar o que aconteceria com uma cantora loura e vibrante de mĂșsica baiana (e brasileira) caso ela se apresentasse em Kansas City, nos Estados Unidos, onde nasceu a festejada Janelle MonĂĄe, ou em Barbados, na AmĂ©rica Central, de onde veio a bem mais pop e radiofĂŽnica Rihanna. Quem sabe nĂŁo achavam exĂłtica, simpaticamente exĂłtica, e desandavam a elogiar muito nossa Claudia Leitte no Twitter.