A boiada de Ricardo Salles chegou ao mangue
Como as democracias tradicionais entram em colapso? Se você já fez essa pergunta você certamente passou ao menos perto do diagnóstico de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no livro “Como as democracias morrem”.
Para os autores, o colapso democrático não acontece, nos dias atuais, com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou golpe militar. Ocorre, isso sim, com o enfraquecimento lento e constante de instituições, como imprensa e Judiciário, e a erosão gradual de normas políticas de longa data.
O avanço autoritário, encarnado pelo populismo de direita que assombra países da Europa e da América, se consolida sem estrondo, mas com gemido. Nem por isso devagar.
Com cinco meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro publicou um decreto no Diário Oficial que remodelava o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Em nota, citava avanços e o intuito de dar mais agilidade para as decisões das políticas públicas relacionadas ao meio ambiente.
Não precisou de cabo ou soldado para destituir os 96 conselheiros e reduzi-los a 23; bastaram uma caneta e o silêncio.
A composição antiga garantia a participação de 22 representantes da sociedade civil; hoje são 4. Não há registros, no dia seguinte, de qualquer ato nas ruas em defesa do órgão responsável por estabelecer critérios de licenciamento ambiental e a qualidade do meio ambiente.
Menos de um ano depois, na reunião de 22 de abril de 2020, o ministro Ricardo Salles resumiu em voz alta o plano para aproveitar as atenções da imprensa e da população no combate à covid-19 para passar a boiada nas normas de proteção ambiental.
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Na última segunda-feira 28, a boiada chegou ao mangue, o ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho.
Os artiodáctilos chegaram por meio de uma decisão do governo que revogou resoluções do Conama relacionadas a preservação de áreas de restinga e manguezais, de entornos de reservatórios de água, que ficam desobrigadas a manter vegetação em seu entorno, e as regras de licenciamento para projetos de irrigação. Também passa a ser permitida a queima de resíduos agrotóxicos e de lixo tóxico em fornos para a produção de cimento.
Segundo o mapeamento realizado pelo ministério há cerca de dez anos, os manguezais abrangem cerca de 1.225.444 hectares em quase todo o litoral brasileiro. Trata-se de zonas de elevada produtividade biológica, uma vez que acolhem representantes de todos os elos da cadeia alimentar.
A decisão acontece no momento fiscais do Ibama são acuados por fazerem o seu trabalho e as multas ambientais despencam no interior do país, sobretudo o Pantanal, região que registrou recordes de queimada neste ano. Isso sem contar as perdas na Amazônia.
O governo prefere aproveitar a fumaça para esconder a realidade em discurso na ONU e culpar agentes infiltrados nos institutos responsáveis por monitorar a destruição.
É neste contexto que o santuário da vida marinha corre perigo. Após a passagem dos bois, poderemos ao menos ver donos de megaempreendimentos lucrarem em áreas até ontem protegidas pela legislação.
Segundo especialistas, é possível, provável até, que a revogação das resoluções do Conama seja revistas na Justiça.
Seria uma derrota temporária a um governo que terá em breve a possibilidade de indicar um ministro terrivelmente alinhado para o Supremo Tribunal Federal. Quanto mais tempo os donos da boiada permanecerem no poder, maior será a possibilidade de alterar as instituições por dentro, a começar pelas cortes superiores, que em breve também estarão domesticadas.
Quando este dia chegar, não haverá extintores de incêndio jurídicos capazes de barrar o avanço da boiada.
Pode levar tempo, é verdade. Quatro, oito ou doze anos de corrosão silenciosa podem ser uma eternidade para quem acompanha os passos vagarosos da boiada. Para séculos de formação geológica e vegetal são um piscar de olhos rumo à destruição.