De Bolívar e Chávez ao 'Super Bigode': o culto aos líderes na Venezuela

Um clássico da salsa com o título sugestivo de "Indestructible!" encerra os episódios do desenho animado "Super Bigode e sua mão de aço", em homenagem a Nicolás Maduro. Assim como Clark Kent, o presidente da Venezuela se transforma em um super-herói para enfrentar os inimigos do país.

Nada é por acaso. As iniciais "SB" estampam o uniforme do Super Bigode, que também podem remeter às do libertador Simón Bolívar. De roupa vermelha, capa e calção azul, assim como o Super Homem, o herói usa um capacete de operário com a bandeira nacional, enquanto uma de suas mãos e o antebraço são feitos de aço.

Dez anos depois da morte do carismático presidente populista Hugo Chávez (1999-2013), em 5 de março de 2013, Maduro, ungido por seu antecessor, segue a estratégia de propaganda e culto à personalidade para inflar sua popularidade.

O Super Bigode de fato foi encarnado pela própria Presidência venezuelana em 2021, segundo uma fonte próxima ao processo criativo. A ideia era transformar o presidente em um herói que luta "na guerra contra o imperialismo" e os problemas do país.

O vilão da história é um louro mascarado na Casa Branca. O Super Bigode luta contra uma toupeira mecânica que deixa o país sem energia elétrica ou contra um monstro que impede a chegada de vacinas contra a covid-19. Integram o elenco de inimigos um Frankenstein criado pela CIA e extraterrestres infiltrados, todos com a cumplicidade de rostos conhecidos da oposição, caricaturizados com escárnio.

O personagem estampa bonés, camisetas e murais na praça de Caracas, em Valencia e outras cidades. É vendido como boneco pelo equivalente a 78 reais (US$ 15), quase três vezes o valor do salário mínimo. E durante o carnaval, adultos e crianças vestiram fantasias do personagem.

"Isto não é um culto à personalidade, é amor à pátria", diz Balbina Perez, de 65 anos, vestindo uma camiseta do Super Bigode. "É um líder, guerreando conosco e nós o apoiamos".

- 'Não é improvisado' -

O próprio Maduro se refere a si próprio como Super Bigode e à sua esposa, Cilia Flores, como Super Cilita, supostamente em tom de brincadeira, mas o historiador Elías Pino Iturrieta, professor universitário e especialista em culto à personalidade, avalia que isto "não é improvisado".

"Deve ser muito bem pensado e respaldado", explica à AFP.

Autor de "El Divino Bolívar", Pino sustenta que o personagem já conta com o aval do partido do governo e dos militares, principais sustentações de Maduro. Uma réplica inflável esteve presente no desfile das forças armadas por ocasião do Dia da Independência, em 5 de julho, do qual Maduro não participou.

"Chávez nunca teria se apresentado como Super Bigode como se fosse o Chapolin Colorado. Estes elementos não estão vinculados a Chávez", explica à AFP o respeitado analista político Luis Vicente León.

Pino considera que se trata de "buscar um ímã, algo que chame a atenção, que distraia, que diga que não se está vivendo no inferno". "É um número de circo, genial como marketing, mas lamentável como desprezo ao povo".

Embora o país tenha dado sinais de recuperação em 2022, a Venezuela mergulhou nove anos antes em uma profunda crise econômica, que provocou uma contração de  80% do PIB e uma hiperinflação que diluiu o poder aquisitivo e levou 7 dos 30 milhões de habitantes do país a emigrar em busca de melhores condições de vida.

O governo costuma culpar os Estados Unidos pela situação.

- 'O lugar central' -

A política venezuelana é "totalmente personalista", opina Daniel Varnagy, doutor em Ciência Política. "O venezuelano precisa de um nome transformado em um símbolo".

E o principal símbolo, quase religioso, é  Bolívar.

O culto à personalidade na Venezuela de fato remonta ao nascimento da República, com uma apologia excessiva ao Libertador.

Presidentes como José Antonio Páez (1830-35, 1860-63), Antonio Guzmán Blanco (1870-77, 1870-84), Eleazar López Contreras (1935-1941) e Marcos Pérez Jiménez (1952-58) usaram a figura de Bolívar com fins políticos.

Chávez, inclusive, adicionou o termo "bolivariana" à denominação da República venezuelana, integrando-o a tudo o que traz o nome do libertador: praças centrais, aeroporto, escolas e, mais recentemente, um novo estádio de beisebol com capacidade para 40.000 espectadores... Como se Bolívar jogasse beisebol, ironiza Pino.

Após a sua morte, em 5 de março de 2013, Chávez se tornou uma referência "praticamente mágica e religiosa", afirma Varnagy. Mas com o passar do tempo, "está começando a deslocar sua magnitude e importância".

Não é que Chávez vá desaparecer, "não pode", assegura Pino.

"Mas o lugar central é ocupado por Maduro. Cada vez menos Chávez e mais Maduro... Mais Super Bigode."

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