Discurso de Bolsonaro sobre corrupção não ataca o problema da...corrupção
Jair Bolsonaro afirmou, em outubro de 2020, que acabou com a Lava Jato porque “não tem mais corrupção no governo”.
Menos de um ano depois, ele parecia manter a convicção. Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na semana passada, o presidente encheu o peito para dizer que “estamos há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção”.
Passou uma semana e a conversa mudou. “Quando se fala em mil dias sem corrupção... Eliminou-se a corrupção? Obviamente que não. Podem acontecer problemas em alguns ministérios? Podem, mas não será da vontade nossa”, discursou o presidente em um evento da Caixa Econômica Federal. “Nós vamos buscar maneiras de, obviamente, apurar o caso e tomar providências cabíveis com outros poderes sobre aquele possível ato irregular. Mas diminuiu muito a corrupção no Brasil, muito”.
Conversa. Quando as investigações chegam perto dele, a estratégia é ou jogar apoiadores feridos na estrada ou botar na geladeira o delegado e atacar o mensageiro da notícia ruim.
Bolsonaro tem um dinossauro na mesa do jantar e já não consegue fingir aos comensais que o bicho não existe. Com a família enroscada em investigações sobre rachadinhas (vulgo corrupção), alvo de um processo que apura interferência na Polícia Federal e sem muito o que dizer sobre vice-líder do governo preso com dólares na cueca, subordinados envolvidos em esquemas de candidaturas laranja ou exportação ilegal de madeira, negociações suspeitas para compra de vacinas e outros equipamentos de combate à pandemia, a estratégia agora é dizer que o dinossauro não é tão feio como parece —ou como poderia ser se não fosse ele o presidente.
Bolsonaro pode desdenhar em público, mas tem em mãos números pouco animadores sobre a percepção da corrupção em seu governo. Em julho, o Datafolha apontou que 70% dos brasileiros acreditavam haver desvios em sua gestão. No fim de setembro, subiu para 61% a parcela de brasileiros que acreditam que a corrupção tende a aumentar no país —eram 56% em julho.
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O impacto das denúncias envolvendo pessoas próximas do presidente —a última, envolvendo a parceria com uma operadora de saúde acusada de usar clientes como cobaias e de maquiar a causa da morte de seus pacientes — provoca desgaste em uma das principais bandeiras bolsonaristas: o mito do presidente tosco, mas honesto.
O eleitor mais fiel já repete argumentos parecidos com o do capitão nas rodas de conversa nas quais o voto para o ano que vem já está em disputa. Os argumentos vão de que a corrupção, se há, diminuiu, mas que a culpa nunca é do presidente —no máximo de seus filhos, por quem até os bolsonaristas-raiz evitam colocar a mão no fogo em público.
A nova estratégia do presidente é arriscada.
No caso das rachadinhas, por exemplo, todos os caminhos levam até seu gabinete. Quem votou nele esperando tolerância zero com desvios já argumenta, nas mesmas rodas de conversa, que quem embolsa salário de funcionário, e funcionário pago dinheiro público, pode ter ambições maiores em um cargo maior. Quem tem boa memória vai se lembrar de um estranho edital para compra de laptops para escolas públicas que só não virou um grande escândalo porque um alarme dos órgãos de controle tocou —até agora ninguém sabe como o jabuti subiu na árvore, como não se cansa de recordar o jornalista Elio Gaspari em suas colunas.
A exemplo do que faz com outros temas, como racismo, violência e a crise sanitária, Bolsonaro ataca a corrupção de forma apenas retórica e superficial porque não reconhece o problema como estrutural. Faz isso enquanto o dinheiro público segue mal gasto e mal gerido —a viagem da sua imensa e inútil comitiva a Nova York mostra isso. Os custos de seus deslocamentos para atos de campanha antecipada também.
Quem vê pizza consumida na rua não vê gasto em cartão corporativo.
Transparência ou prestação de contas fora do cercadinho não é o forte deste governo. Enquanto opera no escuro ou joga fumaça do gelo seco aos apoiadores com maior dificuldade de percepção, a conversa de que tudo o que está ruim pode piorar é só papo de marido abusivo que mantém a companheira presa à ideia de que ele a maltrata, sim, mas é o único que a suporta —como se a vida fora daquele cárcere, e não o cárcere em si, fosse um grande perigo. Daí a tática de povoar o mundo fora do cárcere como um mundo tomado por fantasmas. Estávamos à beira do socialismo, lembra?
Só que o combate à corrupção exige, antes de tudo, uma abordagem honesta para que sua estruturalidade seja reconhecida, mapeada e finalmente alterada. Honestidade é tudo o que o presidente eleito com a ajuda do discurso do medo e de correntes sobre mamadeiras de piroca pagas por sabe-se-lá quem não tem.