Bolsonaro olha para espelho ao dizer que Brasil é refém de uma ou duas pessoas
Na noite da segunda-feira 6, véspera do Dia da Independência, apoiadores de Jair Bolsonaro furaram o bloqueio da Polícia Militar e tomaram a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Na manhã seguinte, outros tantos tentaram arrancar as grades que limitam o acesso ao local com alertas de que vieram para a guerra, e não para o carnaval.
Policiais precisaram usar spray de pimenta para afastar os mais exaltados.
Entre os aglomerados não faltavam faixas de teor golpista, pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal. O terceiro desejo, este mais implícito, é transformar o presidente em chefe do Império.
Por causa do dono da festa, o Ministério da Saúde deixou de enviar cerca de 2,6 milhões de doses de vacina previstas para serem entregues no começo da semana em razão dos “riscos de manifestação”. A informação foi divulgada pela colunista do jornal O Globo Malu Gaspar.
Tudo para que o presidente, cada vez mais isolado politicamente e com chances reais de não ser reeleito em uma disputa limpa via urnas eletrônicas, precisa mostrar força e descolar uma foto nas redes sociais que prove que ele tem o povo a seu lado. Hoje, segundo as pesquisas de opinião, ele tem cerca de 25% de apoio.
Não é pouco, mas hoje seria insuficiente para garantir a reeleição. O índice dos que o rejeitam é de 64%, segundo pesquisa eleitoral do Atlas Político.
Bolsonaro parecia olhar para o espelho ao dizer que “nosso país não pode continuar refém de uma ou duas pessoas, não interessa onde elas estejam”. Segundo ele, ou essas pessoas “entram nos eixos ou serão simplesmente ignoradas da vida pública”.
Como um bedel de vestiário, Bolsonaro disse ainda não admitir que elas joguem fora das quatro linhas do jogo constitucional. Pode não parecer, mas Bolsonaro não estava falando dos filhos envolvidos em rachadinhas, de apoiadores que apontam armas e estimulam a violência contra juízes e opositores, de subordinados que recebem lobistas e outros vigaristas para compra fajuta de vacinas no Ministério da Saúde, ministros desejosos de transformar a Amazônia na Disneylândia dos grileiros, advogado anfitrião de ex-PM que planeja fugir com miliciano morto em emboscada.
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O recado era para ministros do Supremo Tribunal Federal responsáveis por conter os ataques, ameaças e afrontas reiteradamente repetidas por peças-chave do bolsonarismo, a começar por Roberto Jefferson. Por um desses saltos típicos da ginástica artística da vida, o mensaleiro, preso e condenado por corrupção, virou um dos mártires da liberdade por quem os sinos dobram no Dia da Independência.
"Ou o chefe desse poder enquadra o seu ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos. Que nós valorizamos e reconhecemos e sabemos o valor de cada poder da República. Nós todos aqui na Praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa Constituição. Quem age fora dela se enquadra ou pede pra sair", ameaçou o capitão, em claro recado ao presidente do STF, Luiz Fux.
Se não houvesse o risco de receberem um país desertificado e com a lataria metralhada ao fim da experiência, os integrantes de outros Poderes deveriam, só por desencargo, deixar Bolsonaro e seus apoiadores fazer o que quisessem do país até o fim de 2022, sem os dilemas dos pesos e contra-pesos de uma república federativa ou os dedos em riste de opositores preservados em um Estado democrático de Direito. “Vai lá, fera, coloca aí seu plano infalível para baratear a conta de luz, a gasolina, melhorar a vida dos 15 milhões de desempregados e consolar os viúvos, viúvas e órfãos de uma pandemia que vocês ajudaram a transformar em carnificina”.
Sem os portões para a Esplanada nem os muros, grades e contenções das sedes de outros Poderes no caminho, presidente, familiares, ministros e até seu motorista de luxo, ex-campeão de Fórmula 1, não teriam o que fazer a não ser repetir as palavras do Coringa de Heath Ledger: “Sou um cachorro perseguindo carros. Não saberia o que fazer se alcançasse um”.