Apagão, revolta da vacina, voto de cabresto: em que século estamos?
Contrariando Luiz Melodia, tento lembrar em que ano estamos.
Pela capa de jornais, um retrato do Brasil-colônia parece saído das máquinas de Impressão Régia.
Com novo apagão, 13 cidades do Amapá voltaram ao breu. Voltaram também ao tempo em que, sem refrigeração, era preciso salgar a carne para que ela não apodrecesse. E buscar água no córrego. E receber sentença de morte em caso de contaminação de doença infecciosa. Em meio a uma epidemia, o funcionamento de equipamentos básicos dos hospitais, uma conquista civilizatória vendida como moeda corrente nas privatizações a toque de caixa, já não é garantido.
Em São Paulo, escolas particulares suspendem aulas presenciais, recém-retomadas, após novos casos de covid-19. A nova onda, que parece se formar, engolir e dar impulso à primeira, ocorre no momento em que a maior autoridade do país, presa a algum século em que a ciência iluminista ameaçava mas não destronava a feitiçaria, associa a distribuição de vacina a “morte, invalidez, anomalia”. Há quem prefira investir na eficiência das enguias e sanguessugas. Com elas, a nova revolta da vacina se desenha como uma cruzada religiosa, com Deus e pelas famílias.
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Nos rastros da destruição florestal dos novos bandeirantes, as pegadas levam a grandes compradores de nações europeias, a brecha para o mandatário local tirar o corpo fora da responsabilidade pelo desmonte dos órgãos de fiscalização e controle ambiental. Para um delegado, o interesse por espécies nativas, arrancadas pela raiz até o completo desaparecimento, não é de agora. Remete aos tempos do pau-brasil, que poucos brasileiros vivos chegaram a conhecer. Hoje as vias de destruição têm como símbolo o ipê.
A fórmula predatória, em que a festa só acaba quando os recursos se extinguem, se desenha também nos novos ciclos da mineração, contaminação e tragédias relacionadas a barragens e áreas vulneráveis, até hoje não indenizadas.
Ao fim das eleições, um ataque ao sistema de apuração é sucedido por outros petardos. A falha no sistema não exige aperfeiçoamento; exige, para os saudosos, o enterro de um modelo digital, invejado mundo afora, e tomado por teorias da conspiração. Que tal voltar ao tempo dos papéis, em que sinhazinha e sinhozinho poderiam mostrar ao coronel que não foi em vão nem a ajuda em troca de voto nem a ameaça de retaliação em caso de desobediência?
Ah, sim: apesar de avanços nas câmaras, as prefeituras seguem tomadas pelos colonos de sempre, brancos e ricos, muitos dotados apenas de sobrenome. Como nos tempos da capitania hereditária.
Nos EUA, a atual maior potência do Planeta, ainda não se sabe o que acontece quando um derrotado nas urnas se nega a passar o cetro ao candidato vitorioso. Chama para o duelo? Tira no par ou ímpar? Envenena os mais bem colocados na fileira da sucessão para ficar no trono?
O interesse na novela causa apreensão nos súditos da colônia. Vêm de lá as pistas do que devemos ver por aqui nos próximos capítulos da novela da nossa família real.
Antes de rasgar a camisa e enxugar o pranto, volto a Luiz Melodia para me inteirar da coisa sem haver engano. O ano? Quero não esquecer em que século estamos.