Chuvas em SP: 'Era como se um gigante tivesse se estatelado encosta abaixo'

O longo congestionamento na madrugada de sábado entre São Paulo e São Sebastião, no litoral Norte paulista, indicava que milhares de paulistanos tinham tomado a mesma decisão que nós: trocar os blocos de carnaval no asfalto pela areia e o mar. Mas não houve feriado para ninguém este ano.

Até o anoitecer do sábado, quando eu e sete amigos nos instalamos numa casa aconchegante entre as praias de Boiçucanga e Maresias, ninguém imaginava que teríamos um dia de sol e calor no domingo. Mas tampouco as cenas de terror que viveríamos.

Apesar da chuva torrencial que começou por volta das 20h e que se seguiria por 12 horas ininterruptas — viríamos a descobrir que chovera mais de 600 mm — nenhum de nós cogitava acontecer qualquer desastre. E nem havia por quê. A casa estava ali havia 30 anos, recebendo visitas da família e de turistas o ano todo, e nunca experimentara qualquer anormalidade.

Antes da meia noite, estourou o primeiro barulho atrás da casa. Era ainda mais potente que o ruído incessante do temporal, o zunido da ventania e o volume da conversa que se desenrolava na sala. Era como se um gigante tivesse se estatelado encosta abaixo. Ouvíamos os troncos e galhos se retorcendo em lascas e o baque surdo das árvores tombando no chão.

Uma parte da encosta, formada por Mata Atlântica preservada, tinha ido abaixo. O caseiro conseguiu fugir quando a primeira árvore caiu por cima do telhado de sua residência, deixando uma abertura no teto da sala por onde a água inundou o imóvel.

Corremos para os carros, temendo que o restante do morro esmagasse a casa com todos dentro. A Estrada Beira Rio, que levava para Boiçucanga, estava interditada nos dois sentidos. Terra e árvores destroçadas bloqueavam a rua num deles. No outro, o rio tinha transbordado e alagado a via. Os vizinhos que tentaram fugir tiveram de voltar às suas casas. Nós também.

Estávamos cercados. De um lado, enchente. Do outro, casas soterradas. Atrás de nós, um iminente deslizamento. Acima, a tempestade que açoitava a cidade como uma cachoeira despejada direto das nuvens.

Noite de vigília

Sem ter para onde ir, decidimos colocar os colchões na varanda da casa, na parte mais distante da encosta, e passar a noite em alerta. Os carros estavam carregados com nossos pertences, preparados para nos tirar dali a qualquer momento. A partir de então, qualquer ruído nos sobressaltou. Alguns dormiram sentados. Outros nem pegaram no sono.

As horas se passaram e nada mais desmoronou, e pela manhã pudemos observar o estrago. Não havia mais sinal de telefone e energia elétrica, e o abastecimento de água fora cortado. Abrigamos algumas pessoas de uma casa próxima que tinham fugido quando a água do rio invadira os quartos. Ao lado, quatro pessoas estavam soterradas num deslizamento que destruiu duas pousadas e levo junto parte da estrada, de acordo com um bombeiro. A Defesa Civil não conseguiu chegar lá até a tarde do domingo.

Moradores diziam nunca ter visto estrago parecido. Vizinhos gritavam aos outros para abandonarem as residências antes que desabassem. Hesitação e desespero marcavam o rosto daqueles que resistiam em deixar tudo para trás.

No fim do dia, o rio baixou e conseguimos chegar ao centro de Boiçucanga, dois quilômetros ao Leste. São Sebastião tinha colapsado. A prefeitura decretou estado de calamidade pública. Os hotéis e pousadas estão completamente lotados e alguns serviços, interrompidos. Comércios não conseguem abrir porque os funcionários não têm como chegar até lá. Os que funcionam estão sobrecarregados. As estradas estão bloqueadas em todos os sentidos.

Em meio à solidariedade geral da população, que se sobrepõe, aparecem alguns oportunistas. Há quem cobre dos turistas R$ 100 para usar o banheiro do estabelecimento e tomar um banho quente. Decidimos dormir nos carros, depois de assistir à destruição pela TV, enfim com nossos sinais de internet restabelecidos.

Acordamos nesta segunda-feira com a notícia de 36 vítimas, e outras centenas de desabrigados e desalojados. Continuamos ilhados até que as estradas sejam liberadas, o que pode não acontecer tão cedo.

Há muita gente precisando de ajuda. O Fundo Social de São Paulo recebe nesta segunda-feira doações para as vítimas das chuvas. As principais necessidades, segunda a Defesa Civil, são alimentos não perecíveis, água mineral e roupas limpas e em bom estado para uso.