Conheça a história do esquadrão de voluntários na tragédia de SP que resgata vidas e apoia desalojados
Tornou-se cena recorrente no Brasil. A cada novo desastre que atinge a população de baixa renda — como a provocada no último fim de semana pelas fortes cuvas no Litoral Norte de São Paulo —, brota uma rede de proteção solidária em torno dos atingidos. José, Fábio, Kleberson Elio, Cristina e Felipe são “anjos” que O GLOBO encontrou no caminho da lama, da destruição, das mortes e da esperança de vida na região, que recebeu a maior chuva em 24 horas da história do país. De professores a médicos, passando por barqueiros ou donas de casa, eles formam o esquadrão especial de voluntários que não descansa e tem resgatado vítimas do soterramento e apoiado desalojados. Os voluntários viraram a força numa terra arrasada por 57 mortos, até sexta-feira, 13 desaparecidos e pelo menos 1.500 pessoas sem teto. Há comprovação científica do fenômeno. Dados de uma pesquisa inédita mostram que pobres brasileiros em situação de emergência dependem muito mais da ajuda de amigos e familiares do que os de outros países. O estudo “Inclusão Financeira”, da Fundação Getulio Vargas, identificou que 61,1% dos entrevistados no país dizem contar com esse socorro contra 36,1% no resto do mundo. Abaixo, estão as histórias reais de anônimos que estão de mãos dadas na cidade de São Sebastião, balneário que mais concentra vítima da tragédia.
Mão na lama e dor na alma
No primeiro dia em que chegou à Vila Sahy, o barqueiro José Eduardo dos Santos, conhecido como Duca, caminhou descalço até o topo do morro, de onde avistou a devastação das chuvas. Com as próprias mãos, cavou a lama, na esperança de encontrar conhecidos entre os escombros. Só na segunda-feira achou as primeiras vítimas. O voluntário de 42 anos lembra que o pior dia foi quinta, quando encontrou um casal de jovens. A menina, de 28 anos, estava grávida.
— Estávamos tirando uma árvore e, de repente, começou a sangrar embaixo dela. O casal ficou preso em uma raiz, com 2,5 metros de terra por cima, estavam prensados. Dava para ver a barriguinha dela. Eu olho para lama e penso: será que não tem alguém vivo, numa bolsa de ar ou coisa assim? — relata o barqueiro.
O homem do ‘walkie talk’
Fabio Zuanon, de 48 anos, não consegue segurar as lágrimas quando fala sobre a enxurrada da noite de domingo passado. Morador da Barra do Sahy há cerca de um ano, deixou a capital paulista, o terno e a gravata após um burnout. Seu plano era viver com mais tranquilidade e tocar um projeto de App de celular para barqueiros da região. Agora, abriga vizinhos da Vila Sahy em sua casa (que permaneceu de pé) e dá expedientes de dezoito horas para controlar o fluxo das doações de água e comida, fundamentais para quem perdeu tudo. Seu companheiro de todas as horas é um walkie talk que não para de tocar:
— Há muita gente que não sabe o que vai ser da vida dela amanhã, mas opta por colaborar com o outro. Acho que Deus queria que eu estivesse aqui neste momento.
Cicatrizes da luta
Os moradores da Vila Sahy, em meio aos escombros, param na rua o pedreiro pernambucano Élio dos Santos Silva, de 53 anos, para agradecer. Ele salvou muitas vidas em meio ao caos.
— Consegui retirar uma menina que mora de frente à minha casa. Ela me chamava e pedia ajuda, falando “Élio me salva, salva a minha vida” — recorda-se.
Ele perdeu as contas de quantas pessoas tentou resgatar da Vila Sahy enquanto a lama varria as ruas vizinhas de sua casa. Agora, com o corpo ferido pelos escombros, diz que seguirá na tentativa de achar mais corpos:
— Estou com as pernas cortadas, não importa. Coloco calças e meias. Estarei ajudando sempre, tenho sentimentos, não posso ver uma pessoa sofrendo e não fazer nada. Caio pra dentro.
Salvou os seus e os outros
Kleberson Oliveira, de 27 anos, morou a vida inteira na mesma casa, no bairro Baleia Verde, em São Sebastião. Na madrugada de domingo, um deslizamento de terra comprometeu o imóvel, construído há mais de 40 anos no meio da mata.
— Às 3h30 de domingo, perdi minha casa para o morro. Eu, minha mulher e minha filha dormíamos quando ouvi um estalo forte. Eu vi a lama vindo e corri para a casa da minha tia mais abaixo e me amarrei a elas porque achei que íamos morrer — conta.
O desmoronamento não chegou ali e, pela manhã, Kleberson atravessou o lamaçal com a esposa Helenilda, 22 anos, e a filha Isabelly, 6 anos, carregadas. Ele passou pouco tempo com a família em um abrigo da ONG Instituto Verdescola, em Vila Sahy. Na sexta-feira, ele foi o guia de um grupo de 27 homens pelos destroços de Baleia Verde, que buscavam o caseiro Eliseu Alves Pedro, soterrado em casa. Kleberson, que também perdeu o padrinho nos deslizamentos, distribui marmitas para voluntários e membros da Defesa Civil e da Marinha.
Aula de acolhida
Professora da rede municipal de ensino em São Sebastião há cerca de 10 anos, Yara Cristina Lopes, de 32 anos, não sabe quando voltará à sala de aula. A unidade em que leciona, em Boiçucanga, virou um abrigo para quem perdeu tudo nas chuvas. Ela, que mora numa área mais segura do Morro do Juramento, onde houve vários escorregamentos, se juntou à mãe Ediceia e à irmã Franciele e fez da própria casa um ponto de apoio para as vítimas. Ao mesmo tempo, criou uma vaquinha virtual para comprar eletrodomésticos para famílias que ficaram ainda mais empobrecidas.
— Começamos no domingo com uma barraca com alimentos na calçada. Agora, recebemos doações do bairro todo e montamos kits de higiene pessoal e doces para crianças — conta ela, que chega a distribuir 250 marmitas por dia.
Plantão médico
O médico paulistano Felippe Caquetti, de 37 anos, abandonou as férias com a mulher, a avó e amigos na Praia da Baleia e, no domingo, rumou para o Verdescola, onde passou a atender feridos. Até que as autoridades enviassem especialistas para lá, ele ouviu os relatos de pelo menos 38 sobreviventes, que tinham perdido ao menos um parente para as chuvas:
— Foi um trabalho de acolhimento de estresse pós-traumático. No terceiro dia, as pessoas tinham mais infecções relacionadas a lama e água contaminada. Nos primeiros dias, traumas de bacia e cervical.