Convocação de Luciano Hang mostrou-se um dos maiores erros da CPI
Luciano Hang é a expressão, bem ou mal acabada, de um tempo de demarcações territoriais confusas. Demarcações, aqui, no sentido simbólico da atuação.
Postado no meio de um campo cinzento de atribuições públicas e privadas, ele construiu um império varejista enquanto manejava a própria imagem, talvez numa tentativa tardia de conquistar, com dinheiro e prestígio, um certo reconhecimento artístico e dramático negado a ele na juventude.
Empresário-celebridade, Hang é uma das figuras mais ativas do governo Bolsonaro. Mesmo não tendo cargo no governo.
É também um patrocinador declarado da causa do presidente. Mesmo em um país que aboliu as doações empresariais de campanha.
Ainda assim Hang tem mais influência sobre o presidente do que ao menos metade de seus ministros. A presença, na tropa de choque governista, do filho 01 do capitão, senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), durante o depoimento à comissão, na quarta-feira 29, mostra o seu tamanho nesse jogo.
Entender sua ascendência sobre o bolsonarismo exige entender que este é um governo, suspeita-se agora, que empoderou gabinetes paralelos e que se arvora em meias verdades ou mentiras deslavadas para propagar sua própria realidade. Inclusive em assuntos sanitários.
Hang foi um difusor incansável das teses defendidas por Bolsonaro durante a crise. Não se sabe, mas desconfia-se, quem orientou quem. A própria dúvida reforça o tamanho de sua influência sobre a administração. Como patrocinador-master da causa, o dono da Havan era, e ainda é, a parte interessada em confrontar e deslegitimar qualquer medida de distanciamento social que colocasse seus negócios em risco.
Hang fez isso em suas redes sociais durante toda a pandemia, como não cansaram de mostrar durante seu depoimento os senadores responsáveis pelo inquérito. Aqui entra o território confuso do público e do privado.
As redes do depoente eram privadas. Hang não é ministro, mas é figura pública. E, como figura pública, usou uma rede privada para endossar (ou pautar?) as políticas públicas que apostaram na imunidade do rebanho, desdenharam dos riscos da doença, da importância da vacina e agravaram o quadro que hoje ostenta quase 600 mil mortes.
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Ele mesmo bateu no peito para dizer que não foi vacinado. Problema dele, diriam os apoiadores, certamente levantando sua placa também em defesa da liberdade de expressão. O número de pessoas influenciadas pela atitude e a conversa, algo estranha, de que tem um nível de anticorpos digna de super-herói, é impossível de mensurar. Na dúvida, Randolfe Rodrigues pediu à audiência que não imitasse o influencer ali presente e corresse para se vacinar.
É evidente que, em suas redes, Hang não fala apenas com seus clientes nem só a respeito de promoções de suas lojas. Fala (e influencia) sobre questões de saúde pública. E, em atos, desafia de desautoriza as orientações de autoridades sanitárias. Como fez ao inaugurar diversas lojas e produzir aglomerações. Talvez numa tentativa de contribuir com pequenas grandes gotas no oceano da imunização coletiva via infecção.
No mínimo, um risco assumido que agora se converte em tragédia.
Eis que, num exercício de apuração jornalística, o país descobriu que uma grande operadora de saúde atuou como uma espécie de laboratório das teses governistas. Pela tese, bastava aplicar o tal “kit covid”, um produto embalado entre as esquinas do tratamento precoce e o tratamento preventivo, liberar seus leitos e mandar os pacientes voltarem à vida normal sem medo. Se nada mais desse certo, era necessário, segundo as suspeitas, omitir as causas das mortes dos que não foram salvos.
Regina Hang, mãe do empresário, recebeu todos os medicamentos que o presidente e seu guru-empresário diriam ser salvadores. Ela não foi salva. A morte por covid não constava em seu atestado de óbito.
Por esta razão, Hang foi convocado a falar de seu papel durante a crise. A CPI, afinal, pretende entender quais são os pontos de conexão entre o presidente, seu governo, grupos de empresários e a operadora de saúde disposta a aplicar a estratégia em pacientes-cobaia e bagunçar o debate com a divulgação de pseudo-estudos científicos.
Foi um erro.
Ao longo da CPI, os senadores da tropa de choque governista, numa dobradinha esperta com o depoente, identificaram um flanco na tática dos acusadores e passaram a acusá-los de fazer o que eles sabem fazer de melhor: desviar do assunto e construir narrativas.
As do governo envolvem apagar o que postou no verão passado, fingir que sempre defendeu a saúde econômica com, e não em detrimento, do combate ao vírus, e que erros, se aconteceram, foram ou por vontade de acertar ou por conta de prefeitos, governadores, juízes. E não porque uma rede botou em funcionamento uma máquina de moer a realidade.
Mas o que, para os senadores da oposição, deveria ser um ponto estratégico da investigação sobre as responsabilidades de um aliado estratégico do governo virou palanque para quem poderia, no limite, dizer que era tão vítima da omissão, nomeada no depoimento como “erro do plantonista” (um clássico), como qualquer outro paciente da Prevent Senior.
Os senadores da oposição sentiam ter a bala de prata para ganhar a opinião pública mostrando que, para não ser desmentido em público, Hang topou vilipendiar a própria mãe. Hang pediu truco ao mostrar que seu drama pessoal estava sendo exposto, julgado e desrespeitado por conta de perseguição política.
Se a ideia era ganhar os corações e mentes da opinião pública, os idealizadores da CPI parecem ter perdido a aposta. Talvez com certa distância. Isso ficou evidente quando os inquisidores trouxeram para o bolo questionamentos sobre fake news, objeto de outro inquérito e outra comissão, ora suspensa, empréstimo do BNDES, um tema em que bolsonaristas nadam de braçada ao apontar o dedo para as prioridades de gestões anteriores, e até um certo mau gosto do inquirido, vestido como um vilão de HQ e conhecido por espalhar pelo país réplica simbólicas do capachismo pátrio em relação aos EUA. Só que nada disso é tema de uma CPI aberta para investigar atos e omissões do governo e seus alicerces durante a crise.
Com o foco difuso dos perseguidores, Hang ganhou espaço para dizer que, enquanto era atacado por suas posições, ele abria a carteira para ajudar como pôde hospitais à beira do colapso —que as teses defendidas por ele, aliás, ajudaram a colapsar.
Quando Renan Calheiros (MDB-AL) e companhia perceberam, era tarde. Posicionados num ferrolho tático, os senadores governistas usaram seus minutos ao microfone para retocar o mito do empreendedor que dá a cara a tapa, investe no Brasil, emprega milhares de pessoas e agora é tratado como bandido pelos representantes da política tradicional.
Enquanto o bilionário excêntrico discursava, o Brasil real estava preocupado com suas querelas mais profundas. Uma andança pelas ruas mostrava que ninguém, em horário de serviço, parou em frente da TV Senado para tirar suas próprias conclusões. O que esse Brasil real vai receber a partir de agora são pílulas editadas de um confronto narrativo disputado pelas redes.
Este confronto está apoiado na ideia de que o Brasil que empreende e prospera está sendo punido por suas convicções particulares às custas de um drama privado. Ainda que essas convicções particulares tenham sido publicizadas naquele território confuso dos agentes públicos mal definidos com interesses privados bem delimitados.
Nas conversas dos botequins do Brasil real, Calheiros se tornou o símbolo de uma velha política derrotada em 2018 e disposta a retomar o controle da situação. As suspeitas envolvendo seu nome durante décadas de protagonismo em páginas policiais colocam sua posição de interrogador em xeque. O relator da CPI ajuda a erodir os trabalhos da CPI quando se posiciona como inquiridor grosseiro e impaciente, como se a humilhação do acusado fosse a única estratégia da convocação.
A postura de Calheiros a certa altura do depoimento de Hang rendeu uma espécie de lição de moral do colega Eduardo Girão (Podemos-CE), que usou seu tempo ao microfone para falar sobre humildade, exaltar o espírito empreendedor do convocado e ainda pedir um caraminguá para sua base.
Por erros como este fica não muito distante a conclusão de que a presença de Calheiros na relatoria de uma CPI de tamanha repercussão tenha sido, estrategicamente, ao menos na disputa pela atenção e simpatia da opinião pública, um erro. A não ser, é claro, que ao escrever seu relatório baixe nele e em sua pena o santo de seu conterrâneo Graciliano Ramos, mestre da literatura e também dos relatórios de gestão em seus tempos de prefeito em Palmeira dos Índios.
A guerra está em aberto. Mas a batalha mais esperada da semana foi perdida. Era só uma grande má ideia. Com a exposição indevida, conseguiram no máximo fazer com que parte da audiência se inspire no influencer convocado e deixe de se vacinar apostando também em seus anticorpos naturais.