Cracolândia: Vizinhos da antiga área celebram silêncio, segurança e até Uber na porta
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- Júlio PrestesPresidente eleito do Brasil em 1930, impedido de tomar posse
Uma criança passa correndo jogando bola, acompanhada de seu cachorro, despreocupados. Na esquina anterior, outra criança circulava com um saco de pão voltando para casa segundos antes, em um quarteirão onde até poucas semanas atrás isso seria uma cena difícil de presenciar na Cracolândia, em São Paulo.
Essa realidade é novidade para os moradores do entorno da praça e estação Júlio Prestes da CPTM, área conhecida como Cracolândia, e que abrigava até meados de março o fluxo, como é conhecida a aglomeração de compradores e vendedores de drogas e outros artigos, além de moradores de rua e usuários assíduos.
Desde o dia 18 daquele mês o aglomerado migrou para a praça Princesa Isabel, a 400m dali, supostamente motivada pela operação Caronte, que vinha sufocando o tráfico na região desde meados de 2021.
Essa área, chamada pelo governo municipal e estadual Nova Luz por causa do projeto apresentado ainda na gestão Gilberto Kassab e retomado por João Doria em 2011 de revitalização da região, hoje é a casa de centenas de famílias, que se mudaram a partir de 2020 para as unidades construídas por meio de uma PPP (Parceria Público Privada) do governo de SP.
Ao todo oito prédios residenciais abrigam 1.130 apartamentos residenciais, bem como uma creche e a nova sede do hospital Pérola Byington, ainda não concluída.
“Muitos deixaram de comprar o apartamento quando viram que a situação não havia melhorado, outros desistiram de se mudar para cá, e houve ainda gente que abandonou logo depois da mudança”, diz Sonia Domingues. A gerente condominial mora há pouco mais de dois anos nos condomínios murados da região.
Apesar dos batismos oficiais de Nova Luz e Complexo Júlio Prestes, toda a região é parte do bairro dos Campos Elíseos. Com nome copiado da parisiense e luxuosa Champs Elise, foi o primeiro bairro planejado da capital, preparado para abrigar os barões do Café e o palácio do governo.
O projeto original da Nova Luz não contava com os muros, mas sim um caminho arborizado e com livre circulação de pessoas, além de mercado, creche, escola de música e lojas embaixo dos prédios. A via, inspirada na Rambla de Barcelona funcionaria como continuação da praça Júlio Prestes. Hoje, no entanto, os edifícios contam com dupla proteção de muros e arame farpado, junto de portarias e grades. Os moradores dizem não ter um plano para a retirada das estruturas montadas depois de tentativas de invasões e agressões aos imóveis.
Com o movimento do fluxo de usuários, vendedores, traficantes e moradores de rua para a praça Princesa Isabel, a 400 metros dali, o mini bairro tem tomado cara nova. Um misto de cidade fantasma e condomínio recém inaugurado forma o clima das quadras próximas à praça do Cachimbo, que passa agora por uma reforma. “Fizemos um mutirão para desentupir os bueiros e bocas de lobo assim que saíram; era impressionante a quantidade de lixo acumulado”, comenta Luciana Lonzillo.
Para a farmacêutica de 41 anos a maior vantagem da mudança é o sono. “Passei três anos sem dormir direito por causa do barulho que fazem com caixas de som, gritaria; às vezes era até pastor religioso com alto-falante às 2h da manhã”, reclama Luciana, que cumpre plantão em hospitais públicos. “Muitas vezes eu fazia todo o plantão e arranjava um canto no hospital mesmo para descansar e poder chegar em casa só depois das 9h da manhã, que era quando dava um sossego; dormir no horário de dormir não tem preço”, conta.
Lonzillo critica a reclamação dos atuais vizinhos do fluxo, que reclamam dos mesmos transtornos que ela no passado. “Quando estávamos perdendo o sono e gastando uma fortuna com janela anti-ruído e sistemas de segurança, ninguém lá se preocupou em nos ajudar”.
Uber na porta
Cada um dos proprietários dos apartamentos do Complexo Júlio Prestes pagou em torno de R$ 240.000 pelos imóveis, que variam de 50 a 64 m2, e foram sorteados entre os interessados. Pelo caráter de moradia popular do projeto, muitos chegaram de bairros afastados, apesar de trabalharem no centro. A facilidade de deslocamento foi um dos atrativos.
Além da estação Júlio Prestes da CPTM, há quatro estações de metrô dentro do raio de 1km da região e o Terminal Princesa Isabel da SPTrans. Apesar disso, os carros de aplicativos não paravam no quadrilátero da Cracolândia.
“Pode parecer algo trivial, mas nunca tive a chance de chegar em casa de carro; antes precisava descer lá na Rua Mauá, em frente à Sala São Paulo, e vir caminhando com sacola, criança”, comenta Zaira Pires, que mora de aluguel em um dos poucos prédios do entorno que não vieram abaixo para dar espaço à PPP. “Para quem é idoso ou cadeirante então, era pior ainda”, destaca ela observando a brincadeira da filha na praça Júlio Prestes. Com desníveis, trechos de paralelepípedos e buracos, a praça é uma armadilha para quem tem dificuldades de locomoção.
E por anos, área vetada para brincadeiras infantis. Quando adolescente, Zaira aproveitou pouco os espaços das quadras vizinhas à sua, mas aproveita com a filha as mudanças recentes. “Gradearam a praça e fica sempre a GCM na porta, então já faz um tempo que a trago para pedalar aqui”, diz. “Sinceramente, não acredito que o fluxo não volte para cá… não é a primeira vez que migram para a Princesa Isabel, duvido que seja a última”, reflete.
Sua visão contrasta com os moradores mais recentes, que chegaram após a última migração, ocorrida em 2017 pouco após o lançamento do Programa Redenção pelo então prefeito João Doria e posteriormente abandonado por Bruno Covas.
Doria promoveu o Redenção de modo tumultuado, com falhas na comunicação entre as secretarias envolvidas, além de uma operação policial midiática e conflituosa tocada pela polícia civil, sem comunicação com a militar, seguida pela demolição de imóveis tombados com pessoas ainda ocupando o interior.
Com a operação policial, o fluxo migrou na ocasião para a mesma Princesa Isabel que o abriga hoje, mas voltou ao quadrilátero da Júlio Prestes depois de um mês. Na ocasião, ambas migrações foram orientadas por membros do PCC, segundo frequentadores da região.
“É ótimo que tenham limpado esta parte do bairro, mas no final das contas mudou muito pouco; ao invés de eu ter medo de ser roubada por aqui, agora temo três quadras abaixo, quando preciso ir ao terminal ou descer a Duque de Caxias'', contemporiza Zaira. Para ela, o problema só será resolvido com muito investimento em saúde e tratamento para dependentes.
“Dizem que a internação compulsória dos dependentes não é humano, mas viver na imundice como fazem tampouco é humano… então o que seria mais correto ou humano?”, questiona a mãe guardiã na escola da filha Eliza.
A internação compulsória de dependentes químicos é alvo de críticas e apoio entre a comunidade psiquiátrica, e é defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, que em Junho de 2019 sancionou uma lei autorizando a medida. Quando prefeito, João Dória, que agora disputará a presidência contra Bolsonaro, também defendeu a medida. O que não fica claro nas políticas apresentadas até o momento é para onde serão levadas as pessoas consideradas indesejadas e fonte de medo nos moradores vizinhos, bem como tratar a miséria apontada como núcleo do problema.