Em despedida, Pazuello deu roteiro pronto para CPI da Pandemia
Vinte dias atrás, ao deixar o Ministério da Saúde no pior momento da pandemia, o general Eduardo Pazuello proferiu um discurso para lá de estranho. Na cerimônia que passou o bastão ao seu sucessor, Marcelo Queiroga, sem que nada lhe fosse perguntado, disse que ali acontece uma certa “operação de grana com fins políticos” e lamentou não ter conseguido manter uma gestão 100% técnica.
Pazuello descreveu pressões para receber lobistas, operadores, representantes de empresas e emissários de partidos políticos. Também descreveu uma romaria, no fim do ano, de gente em busca de “pixulé”. Propina, para entendidos.
Ele deu a entender que caiu porque não se sujeitou. E, por não ter se sujeitado, teria ouvido: “Ih, vai dar merda. É assim que funciona.”
Em um dos pontos mais obscuros da fala, acusou um grupo de médicos de tentar fraudar uma nota técnica para beneficiar a distribuição de um medicamento. “Esses médicos fizeram uma fake news para o presidente”, disse.
Pazuello ainda disse que em sua pasta faltavam, em plena era Bolsonaro, “gestão, liderança, ética, probidade, honestidade e responsabilidade”.
Quando o general assumiu a missão, o Brasil tinha 15 mil mortos por Covid-19. Dez meses depois, somava 280 mil.
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O sincericídio de Pazuello em sua despedida não é só falta de noção. Retardar, deixar de praticar ou praticar indevidamente ato de ofício é crime previsto no Código Penal. Chama-se prevaricação. Está também previsto no Código Penal o crime de falso testemunho.
Em seu ato final, o general deixou um rastro de perguntas a serem respondidas. Uma delas: por que não denunciou ou deixou de encaminhar às autoridades competentes os supostos operadores, lobistas, oráculos do “vai dar merda” e fraudadores de laudo médico? Quem são eles, onde atuam e em nome de quem?
Perguntas como essa poderiam ter sido feitas em entrevistas a jornalistas profissionais que tiveram acesso ao vídeo de seu discurso e não puderam encaminhar as suas questões. Mas Pazuello submergiu desde que deixou a pasta.
Por alguma razão, aquelas palavras não causaram escândalo nem repercutiram como deveriam. O Brasil estava ocupado demais em enterrar seus mortos e evitar o colapso dos sistemas públicos e privados de saúde que ele e companhia ajudaram a agravar.
Em seu telefonema para o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Jair Bolsonaro pode até ter ensaiado a conversa, mas não deixou de demonstrar preocupação com uma possível convocação, para a futura Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, de seu ex-ministro. Não é difícil saber o porquê.
Por pressão do Planalto, os senadores aceitaram ampliar o recorte das investigações da CPI.
Os parlamentares terão de apurar o que gestores estaduais e municipais fizeram com os repasses federais durante a emergência.
A ampliação do escopo dilui os trabalhos e ajuda a tirar o foco e os holofotes nas supostas ações e omissões do Planalto durante a crise.
Há muito a ser esclarecido sobre os critérios definidos pelo governo pela demora em providenciar equipamentos básicos, como cilindros de oxigênio em regiões colapsadas, como o Amazonas, o uso de dinheiro público para compra, fabricação e distribuição de remédios ineficazes e a sabotagem a medidas de isolamento social. Alguém ganhou com isso? Perguntas não ofendem, mas, feitas em público, diante das câmeras e das redes viralizáveis, podem constranger integrantes e ex-integrantes de um governo habituado apenas a falar para a claque e imprensa amiga.
Em 2018, Bolsonaro fugiu de debates para evitar o confronto.
De lá pra cá, evita dar entrevista e só se pronuncia nos cercadinhos onde se sente seguro e aplaudido.
Na reunião de 22 de abril, ele deixou claro que temia investigações sobre amigos e familiares e anunciou que pretendia interferir nos órgãos de controle e investigações, como a Polícia Federal.
Agora adota a estratégia do diversionismo para desidratar no nascedouro uma CPI que pode ou não trazer algo de novo sobre seus erros e suas responsabilidades, já fartamente registrados.
Mas a CPI foi instalada. Será, a partir de agora, um campo de disputa de narrativas e ocupação de postos-chave entre governistas, opositores e os nem-lá-nem-cá que balançam conforme as oportunidades. O passe pelo apoio sairá mais caro. Seria bom que novos Pazuellos venham a público dizer como isso funciona.
Não se sabe o que Bolsonaro teme. Sabe-se apenas que, torcido e retorcido, Bolsonaro é apenas um sujeito acuado e assombrado pelo medo.