Don L antecipa revolução brasileira no disco 'Roteiro para Aïnouz 2': "A mudança é inevitável"
Don L ousou antecipar uma revolução no Brasil no seu último disco, o “Roteiro para Aïnouz Vol.2”. Com uma atmosfera cinematográfica, o álbum recupera o nosso passado colonial, reflete sobre este presente meio “desesperançoso” e, o mais importante: sonha um futuro diferente para o país - tudo isso num jogo de ressignificação da história que somente as rimas do veterano cearense conseguem trazer.
Gabriel Linhares da Rocha já explicou em outra entrevista a origem do “L” em seu nome artístico. L de “liberdade” me parece ser a aposta mais justa. É sobre isso que o artista versa. “Sou muito mais guerrilheiro que MC”, assume na faixa “A todo vapor” do RPA2.
“A mudança no planeta é inevitável. A gente tem duas opções: ou acaba a humanidade ou a gente muda, porque do jeito que está é inviável continuar vivendo”Don L
As ruas de Fortaleza, Ceará, foram a escola de rap de Don. Junto a outro veterano respeitado da cena, o rapper Nego Gallo, formaram o grupo “Costa a Costa”, que viria a ser referência pros vétin (gíria usada em Fortaleza para se referir aos jovens mais novos) das bancas de cá. Sob o pôr do sol bonito da cidade, Don L ajudou a definir os caminhos do hip hop no Brasil.
Rascunho para Aïnouz
O RPA2 é parte de uma trilogia autobiográfica de Don. De trás para frente, ele começa a contar sua história no “Roteiro para Aïnouz Vol.3”, onde expressa insatisfação com a falta de investimento no rap brasileiro, reflete sobre os estereótipos de um nordestino em Sāo Paulo e mostra suas próprias contradições: “Eu sou comunista e curto carros”, canta na famosa “Aquela fé” (faixa 3).
A admiração pelo cineasta Karim Aïnouz, também cearense, e a ambição de unir rap e cinema, fizeram com que “Rascunho para Aïnouz” (um dos nomes pensados para o projeto) se tornasse “Roteiro”. Tanto Don quanto Karim falam de êxodos em suas obras. A personagem Hermila de “O céu de Suely”, filme de Karim, está em constante fuga - assim como Don, assim como eu e como você.
Em RPA2, que saiu no YouTube com os visualizers (vídeos mais curtos) bem produzidos, é possível perceber a experimentação de Don no audiovisual e uma tentativa de recontar a história do Brasil. “As músicas que faço têm uma coisa épica. ‘Vila Rica’ e ‘Bingo’ são músicas que conseguem pintar uma cena na cabeça das pessoas. Gostaria muito de fazer os clipes, mas a produção é cara”.
“O disco tem outra visão de tempo. Ele deixa claro que o passado está aqui a todo momento. Ressignificar nosso passado é o que vai definir nosso futuro. O que impede a gente de fazer grandes produções questionadoras, que movimentam nosso imaginário?”.
“A gente precisa repensar valores”
Quem acompanha Don L sabe que seu rap é político e posicionado. Comunista, disse que se sente “infestivável”, já que os festivais de música no Brasil ignoram a presença do artista, que sempre lota shows e esgota rapidamente os ingressos.
Isso tem mudado gradualmente, aponta o rapper. Don fará show no Festival MADA, em Natal, no Rio Grande do Norte, em setembro deste ano. Mas, ele ainda enfrenta os percalços e contradições da música independente no país. “Faço música porque preciso, músicas que queria ouvir e vejo que ninguém está fazendo. Não me guio pelo streaming, mas o mercado hoje em dia é voltado para isso. As pessoas não têm mais ambição de fazer um grande álbum”, afirma.
Ao mesmo tempo, sabe que a nova configuração da música carrega vantagens. “A gente não pode ficar só vendo o lado ruim, reclamando das coisas. O fato de você ter disponível, a um clique, o catálogo musical da humanidade é muito louco”, exemplifica.
A obra de Don está disponível em todas as plataformas digitais. Com o "RPA2", o artista teve uma boa colocação no Spotify, por exemplo, chegando a ser capa de playlist na plataforma. Ele também se aventurou no aplicativo chinês Kwai, onde lançou o clipe do single “Na batida da procura perfeita”.
Entre versos livres, mixtapes, álbuns e clipes, Don defende uma nova forma de pensarmos música x plataformas. “Nessas grandes plataformas a gente não tem um contrato de negociação de valores. Os caras pagam o que acham que devem pagar. A gente pode, no máximo, negociar porcentagens. Não dá para calcular quanto vale uma visualização. É um negócio muito nebuloso”, aponta.
É lutar ou lutar: “Nossa vida é indigna”
Fã de utopias e fervoroso para torná-las realidade, Don acredita que um novo futuro está por vir no Brasil e o momento assombroso que vivemos (pandemia, desigualdades, fome) deve ter seu fim. Para o artista, é urgente tentar acelerar o processo dessa mudança. “A vida que a gente vive é indigna. A gente tem muito conhecimento acumulado para que possamos viver bem todo mundo, todas as pessoas que vivem nesse planeta. Todo esse conhecimento é desperdiçado em razão de uma pequena parcela que quer continuar tendo grandes privilégios”, reflete.
“Acredito que é inevitável a mudança. Isso pode acontecer em dez gerações, em duas ou em uma. Tudo depende da gente”.Don L
Don já lançou o roteiro, basta seguir.