É possível não politizar a pandemia do coronavírus?
Na última semana, o Senado deu início à CPI da Covid. Uma das casas legislativas que regem o Brasil começou a investigar a ação do governo federal durante a pandemia do coronavírus – que ainda não acabou.
Políticos contrário à instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito justificavam que o marco seria uma maneira de “politizar a pandemia” e que a CPI se tornaria palanque para políticos que se opõe ao presidente Jair Bolsonaro. Mas será que é possível não politizar a pandemia?
A pandemia, essencialmente, é um fenômeno global que começou em decorrência de uma nova doença, a covid-19. Sendo assim, a primeira impressão é que se trata de um fenômeno científico, ligado à biologia e à medicina.
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No entanto, a crise sanitária levou a outras crises, como uma crise econômica e social – essas, questões essencialmente políticas. É o que explica o sociólogo e cientista político da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rodrigo Prando.
“A crise pandêmica, a crise sanitária e médica, gerou uma crise econômica pela necessidade de distanciamento, do fechamento do comércio, da paralisação da produção em diversas indústrias. Então, você tem uma crise sanitária que se conjuga a uma crise econômica e também, em vários países, houve uma crise política”, explica.
“Por que uma crise política? Porque, com o vírus se apresentando, muitos políticos abdicaram de assumir o processo de liderança e se negaram a compreender a seriedade da situação. A grande questão é que a política é o elemento organizador da sociedade.”
Prando lembra que, no Brasil, mais negros morreram de covid-19 que os brancos, por exemplo. Mais pessoas foram vítimas da pandemia em hospitais privados do que em hospitais particulares. “No Brasil, a pandemia explicitou, tornou agudos problemas que são historicamente conhecidos, como a desigualdade social, que se aprofunda durante a pandemia, em relação à educação, à geração de renda.”
Rodrigo Prando conclui que a resposta para a pandemia deve, sim, ser política. “Na minha perspectiva, seja aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, a resposta à pandemia tem que ser política, porque os políticos foram eleitos para fazer a gestão daquilo que é público. Portanto, as instituições do Estado no nível municipal, no nível estadual e no nível federal têm prerrogativas e devem assumir, dentro dessas situações, as ações de equacionamento e enfrentamento da pandemia.”
Covid-19 em pauta no mundo
Doutora em ciência política, Deysi Cioccari aponta para o fato de que a agenda política global está totalmente voltada para o coronavírus. “A pandemia é hoje o maior assunto em todas as agendas políticas do mundo. Então, é praticamente impossível o tema não entrar na pauta.”
Um exemplo claro sobre a relevância do coronavírus nas discussões políticas são as eleições nos Estados Unidos em 2020. Donald Trump adotou uma postura negacionista durante muito tempo, o que levou o país a assumir a liderança no número de casos e mortes durante um período.
Com a mudança de rumos políticos, Joe Biden apoiou a ampla vacinação e conseguiu mudar os rumos do país. A população norte-americana vê os números caírem de forma relevante e, aos poucos, conseguem retomar a vida.
Isso não quer dizer, no entanto, que a sociedade não siga dividida. “O problema não vem só dos detentores de poder. A pandemia deveria formar uma coesão social mas a própria população (e não falo somente no Brasil) provoca um alargamento dessa coesão, dando lugar a radicalismos e polarizações”, lembra Cioccari.
Negacionismo durante a pandemia
Deysi Cioccari lembra de uma fala de Michelle Bachelet, Alta Comissão para os Direitos Humanos na ONU, criticando a “politização da pandemia”, mas fazendo uma referência ao negacionismo.
A cientista política acredita que não há problema em usar politicamente as medidas efetivas dos governos no combate à covid. “Isso é política”, afirma. “Como o próprio governador (de São Paulo, João) Doria que eficazmente lutou pelas vacinas. É admissível e esperado que ele use como palanque. O problema é quando a disputa de narrativas retarda decisões que deveriam ser tomadas para salvar vidas. Tornar política a pandemia é inevitável num mundo onde o que é bom aparece o que aparece é bom. Minimizar a gravidade disso é o grande problema.”
Com a morte do ator e humorista Paulo Gustavo – e de outros 420 mil brasileiros –, muito opositores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) o culparam pelo momento vivido pelo país. A negação da ciência e a chamada “guerra de narrativas” é um ponto destacado por Cioccari e Prando.
“Qualquer liderança política hoje, no mês de maio de 2021, já tem conhecimento que, na ausência da vacina, não existe um tratamento comprovado para a doença, então, que as ações preventivas são o distanciamento, o uso de máscara e a higiene das mãos”, diz Rodrigo Prando. “A grande questão são os líderes que foram omissos, comportaram-se desprezando, menosprezando a gravidade da pandemia e, não raro, com posturas negacionistas, com condutas – seja no discurso ou nas ações – que foram de desprezo da ciência, baseadas em fake news, em teorias da conspiração”, aponta.
“Então, é óbvio que uma parcela da sociedade e da população vai fazer uma leitura que essa liderança foi, no mínimo, omissa ou que contribuiu para uma maior disseminação do vírus e, consequentemente, do número de doentes e também dos óbitos, como consequência.”
Perspectiva médica
Gerson Salvador é médico infectologista e segue a mesma linha que os cientistas políticos. “A pandemia vai modificar a vida das pessoas e das coletividades. Qualquer resposta a ela depende de mobilizar o poder constituído, são respostas que depende da política. Então, a pandemia em si vai trazer modificações políticas e as respostas a ela também passam pela política necessariamente”, opina.
Ele acredita que não seja questão de “politizar” a pandemia em si, mas entende que a doença tem implicação política necessariamente. “Na questão da pandemia no geral, acho que não tem como avalia-la nem intervir nela sem levar em consideração a política. A política faz parte.”
O médico lembra ainda que é responsabilidade do governo distribuir recursos para que os médicos consigam atender a população, como distribuir recursos, insumos, prover materiais e gerenciar os recursos humanos. “É também no poder pública que está concentrada a possibilidade de fazer vigilância, de avaliação de fluxo de pessoas. Tudo isso é competência do poder público.”
A resposta à pandemia é uma resposta política necessariamente, depende do poder constituído. É a ele que cabe distribuir os recursos públicos, em relação à insumos, a prover recursos humanos, a prover materiais.
“É também no poder pública que está concentrada a possibilidade de fazer vigilância, de avaliação de fluxo de pessoas. Tudo isso é competência do poder público”, afirma. Salvador ainda afirma que as decisões do poder público devem ser baseadas na ciência, no que já se sabe sobre a pandemia de covid-19.
Como médico, Gerson Salvador afirma que o papel do profissional da saúde é atuar no tratamento das pessoas – não no controle da pandemia. “O que nos cabe é atender as pessoas quando elas estão doentes. Mas o determinante de como a pandemia circula no país tem a ver com o quanto as pessoas têm condições de permanecer em distanciamento, com o quanto apoio econômico essas pessoas e as empresas conseguem responder, depende do quanto há de imunização, como as vacinas são distribuídas”, aponta.