Enquanto Neymar diz "eu autorizo", tiros de Bob Jeff escancaram que bolsonarismo mata

Brazilian former Deputy Roberto Jefferson attends a pro-gun rally in Brasilia, Brazil July 9, 2020. REUTERS/Adriano Machado
O ex-deputado bolsonarista Roberto Jefferson. Foto: Adriano Machado/Reuters

Quem acessou o YouTube no Ășltimo fim de semana nĂŁo conseguiu abrir qualquer janela de conteĂșdo sem esbarrar com Jair Bolsonaro (PL).

Na versĂŁo comprada para as redes digitais, saĂ­a o presidente incendiĂĄrio que debocha dos mortos e dos familiares dos mortos na pandemia e defende metralhar opositores e surgia um candidato sereno, sem erguer o tom de voz, disposto a convencer espectadores e eleitores moderados de que estĂĄ em curso uma luta do bem contra o mal e que o “Brasil que estamos construindo” Ă© o Brasil de “liberdade, respeito e prosperidade”.

A conversão de uma figura raivosa, despreparada e indisciplinada em político boa praça, amigo e defensor de nossas famílias, cheio de amigos e fãs, contou com a ajuda, no fim de semana, até de Neymar, estrela de uma superlive em que Bolsonaro exibiu os muitos trunfos anunciados em forma de apoio.

Na live, o atacante do PSG e da seleção brasileira deixou claro que seu apoio pĂșblico se dava por uma orientação particular. “No momento mais difĂ­cil da MINHA vida, o presidente foi o primeiro a se posicionar dizendo que estaria do meu lado”.

Neymar falava de uma acusação injusta de violĂȘncia que sofreu em 2019. A denĂșncia nunca foi provada e aconteceu pouco antes de uma patrocinadora romper o contrato com o atleta por conta de uma outra acusação, a de que ele teria assediado uma funcionĂĄria da empresa. Mas a parceria sobreviveu ao novo solavanco e hoje Neymar Ă© um dos muitos brasileiros vestidos de verde e amarelo dizendo "eu autorizo" ao anunciar seu voto.

Dias antes, o atleta havia sentado no banco dos réus e, com um passe em forma de depoimento, deixou seu pai e empresårio livre para responder a um processo por sonegação na Espanha.

Mas isso tudo Ă© outra histĂłria. Ou nĂŁo.

Ao menos esse detalhe seria pouco lembrado por quem anda petrificado pela virulĂȘncia da campanha. Aparentemente, quem vĂȘ live mas nĂŁo vĂȘ coração. E a exibição de Neymar como trofĂ©u nĂŁo deixa de ser um gol do presidente em busca de apoio pela reeleição. Ou deveria ser.

Todo o esforço para apresentar um presidente popular e amigo dos boleiros e das famílias foi metralhado no mesmo fim de semana por um parceiro, digamos, menos virtual do atual presidente.

Neymar Ă© a bola da vez, mas Ă© Roberto Jefferson, ex-deputado e delator do chamado mensalĂŁo, quem atua de fato como ponta direita, jogando na extremidade do campo, do time de Bolsonaro.

Esse sistema ofensivo tem no lĂ­der do PTB um soldado disposto a gastar as balas reais e verbais em defesa da trincheira bolsonarista sob a trĂ­ade pĂĄtria, Deus e famĂ­lia, que ele emula e repete como militante que Ă©.

E essa trincheira, no Ășltimo fim de semana, voltou a mirar adversĂĄrios e o Supremo Tribunal Federal, que proibiu uma emissora de rĂĄdio –logo uma concessĂŁo pĂșblica – e a prĂłpria campanha do candidato Ă  reeleição de cometerem crimes ao espalhar notĂ­cias falsas e acusaçÔes infundadas contra o ex-presidente Lula (PT).

Por conta das restriçÔes legais, bolsonaristas como Bob Jeff passaram os Ășltimos dias dizendo estar sob censura, uma das muitas fake news colocadas em campo, como a que alterou uma foto do influencer Casimiro para mostrĂĄ-lo como outro apoiador do presidente – que ele nĂŁo Ă©.

Em vĂ­deo postado por sua filha, Cristiane Brasil, Jefferson chamou a ministra CĂĄrmen LĂșcia de “Bruxa de Blair”, “podre por dentro e horrorosa por fora”, e a comparou a “prostitutas” e “vagabundas arrombadas” por seu voto pela punição da Jovem Pan por declaraçÔes ofensivas e distorcidas contra Lula proferidas durante o suposto noticiĂĄrio da emissora que supostamente deveria se portar como uma concessĂŁo pĂșblica, nĂŁo partidĂĄria.

Jefferson expressava ali em palavras o que seu mestre e aliado, Jair Bolsonaro, nĂŁo poderia proferir em viva voz para nĂŁo afastar os eleitores moderados que tenta enganar novamente. Dobradinha parecida aconteceu quando, impedido de concorrer Ă  PresidĂȘncia, ele escalou um falso religioso, de nome Padre Kelmon, para fazer o trabalho sujo nos debates em que serviu de escada a Bolsonaro.

Com os ataques, Jefferson, que estå preso em regime domiciliar por incitar crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e descumpriu medidas cautelares impostas a ele, como a proibição de usar redes sociais, compartilhar fake news contra ministros do STF ou orientar os dirigentes de seu partido, sabia onde estava se metendo: fatalmente uma nova ordem de prisão seria proferida contra ele. Assim, poderia posar de mårtir de uma suposta medida autoritåria de quem tentava censurå-lo.

A Polícia Federal desconfiava que queria cozinhar a situação até terça-feira, quando jå não poderia ser preso por conta das eleiçÔes. Com a nova ordem de Alexandre de Moraes, alvo preferencial da turma, a PF foi até a casa do dirigente para levå-lo novamente à cadeia, de onde não deveria ter saído.

Os agentes foram recebidos Ă  bala. Ao menos duas granadas e 20 tiros foram disparados contra um automĂłvel usado pelos policiais. Dois deles ficaram feridos.

Cada tiro era um estilhaço no discurso bolsonarista de que todo cidadão de bem tem o direito de se armar levando-se em conta a legítima defesa. Na pråtica, o que gente como Jefferson, apoiador de primeira hora de Bolsonaro, quer é tiro livre para cometer todo tipo de barbaridade contra a lei. Inclusive colocando a vida de policiais em risco.

O episĂłdio serviu para mostrar que os policiais, uma das bases de apoio de Bolsonaro, serĂŁo as primeiras vĂ­timas da violĂȘncia quando criminosos vestidos de patriotas forem lembrados de que ainda existe lei no paĂ­s e isso aqui (ainda) nĂŁo Ă© faroeste.

Como sempre acontece diante do potencial estrago, Bolsonaro correu em suas redes para negar o que estava claro às vistas de todo mundo: o ódio que ele e sua turma alimentam com discursos e arsenais é um grande risco à segurança nacional.

Jefferson queria a guerra, mas queimou a largada e foi empurrado sozinho para o tiroteio. Hoje é mais um a ser largado na estrada mas por uma imposição eleitoral: a uma semana das eleiçÔes, Bolsonaro jå não pode sair em defesa do aliado, como fez com o deputado afastado Daniel Silveira, do mesmo PTB de Jefferson, sob o risco de rasgar a fantasia e afugentar parte dos eleitores.

Bolsonaro, por falha de memória ou de caråter, até tentou dizer que mal conhecia o meliante e nunca tirou foto com ele. Foi desmentido pelos fatos e uma coleção de imagens: Jefferson é o braço armado e extremo do bolsonarismo, e nem um caminhão de dinheiro para propaganda é capaz de tirar isso de cena. As digitais de Bolsonaro no episódio começam com o alinhamento de discurso e vai até a escalação de seu ministro da Justiça, Anderson Torres, para negociar a rendição, num ato simbólico de um sequestro a que estamos todos (inclusive os policiais escalados para cumprir a lei) estamos submetidos.

NĂŁo fosse o suficiente, os apoiadores de Jefferson e do presidente, desses que invadem festa e matam o aniversariante que ousa votar em outro candidato, foram convocados para cercar a residĂȘncia do criminoso e demonstrar todo seu apoio. LĂĄ, fizeram o que fazem toda vez que esbarram e um profissional de imprensa pintado como inimigo: um repĂłrter cinematogrĂĄfico foi agredido por bolsonaristas e chegou a desmaiar.

Esse é o clima para a semana derradeira das eleiçÔes.

Bolsonaro vai precisar de um time inteiro de Neymar para sair da trincheira que seu aliado fiel o colocou antes de se entregar à polícia, após oito horas de negociação.

O atentado, que muitos pensar ser sĂł uma forma de tirar o ataque do governo ao salĂĄrio mĂ­nimo de cena, pode respingar em sua campanha? Deve.