Entenda por que Ruanda aceitou receber refugiados expulsos do Reino Unido
ApĂłs a Justiça britĂąnica barrar recursos que visavam travar o polĂȘmico plano do governo Boris Johnson de enviar solicitantes de asilo com passagem sĂł de ida para Ruanda, o primeiro voo com destino ao paĂs africano, com oito refugiados expulsos, estĂĄ previsto para decolar nesta terça-feira.
A medida Ă© vendida por Londres como uma forma de combater a chegada de imigrantes ilegais e secar um sistema em que muitos arriscam suas vidas ao atravessar o Canal da Mancha. Mas por que Ruanda, um pequeno paĂs na Ăfrica Oriental a 7 mil km do Reino Unido e com um territĂłrio jĂĄ densamente populoso, aceitou fazer parte desse acordo?
O valor do acordo, de £ 120 milhÔes (R$ 738 milhÔes), jå é um atrativo e tanto para Ruanda. Mas o movimento pode ter mais a ver com a construção da imagem de Kigali no exterior e no apoio internacional que seu governo mira do que no contracheque.
No Brasil, o paĂs africano talvez seja mais conhecido pelo filme "Hotel Ruanda", que retrata o genocĂdio de 1994 no qual extremistas hutus massacraram cerca de 800 mil membros da minoria tutsi e hutus moderados. Um dos lĂderes que puseram fim ao banho de sangue foi Paul Kagame, o atual presidente do paĂs, cargo que ocupa desde 2000.
Desde o fim do genocĂdio, Ruanda tem recebido grande apoio financeiro internacional, obtendo crescimento econĂŽmico, particularmente na capital Kigali â considerada uma das cidades mais limpas da Ăfrica â, alĂ©m de ser referenciada por avanços sociais, como seu Parlamento no qual mais da metade das cadeiras Ă© ocupada por mulheres.
Mesmo assim â e tambĂ©m por isso â, alguns se referem a Kagame como um dos ditadores mais queridos do mundo. Isso porque ele faz parte de uma lista de lĂderes africanos que alteraram a Constituição para permanecer no poder, por ter vencido eleiçÔes manchadas por falta de transparĂȘncia, por acusaçÔes de sufocar a oposição, inclusive com supostas execuçÔes de rivais, e por abusos de direitos humanos.
Tentar polir a imagem de Ruanda dessas acusaçÔes Ă© um possĂvel combustĂvel para a administração Kagame buscar se aproximar do Reino Unido. Para Louis Gitinywa, advogado e analista baseado em Kigali, a motivação tem a ver tambĂ©m com "prestĂgio".
â Kagame estĂĄ ganhando um soft power em termos de estatuto diplomĂĄtico â afirmou Gitinywa ao GLOBO. â Ele sempre ativarĂĄ essa imagem de um lĂder africano muito dinĂąmico que sabe como resolver problemas mundiais.
HĂĄ anos, Kagame â ele mesmo refugiado em Uganda quando criança â vem abrindo as portas do paĂs para imigrantes. Em 2017, ofereceu receber atĂ© 30 mil africanos da LĂbia. No total, jĂĄ foram quase 130 mil refugiados, principalmente da RepĂșblica DemocrĂĄtica do Congo e de Burundi.
Apesar de desaprovar o acordo e demonstrar preocupação com o risco de "danos graves e irreparĂĄveis" aos enviados a Ruanda, a ONU jĂĄ elogiou "a adoção de uma das polĂticas mais progressistas do mundo para apoiar a autossuficiĂȘncia dos refugiados" pelo paĂs, "promovendo a inclusĂŁo financeira deles".
PorĂ©m, organizaçÔes humanitĂĄrias dizem que o acordo pode violar o compromisso do Reino Unido com a convenção da ONU de 1951 sobre refugiados. Ela exige que os requerentes de asilo sejam protegidos no paĂs em que chegam e que eles nĂŁo podem ser enviados Ă força para ĂĄreas inseguras.
Em 2018, as forças ruandesas mataram 12 refugiados congoleses durante um protesto contra cortes nas porçÔes de alimentos, e a polĂcia prendeu mais de 60 outros. Uma anĂĄlise publicada em 2018 na Forced Migration Review, da Universidade de Oxford, constatou, apesar "da adoção de uma abordagem polĂtica relativamente progressiva para apoiar a integração deles", que refugiados congoleses, mesmo tendo oficialmente o direito de trabalhar, tĂȘm significativamente maior risco de ficarem desempregados que locais.
E como se estivesse se antecipando Ă s crĂticas, Boris descreveu Ruanda como "um dos paĂses mais seguros do mundo, reconhecido internacionalmente pela recepção e integração de imigrantes". Em 2021, porĂ©m, Londres instou autoridades a investigarem alegaçÔes de assassinatos extrajudiciais, supostos casos de tortura e desaparecimentos forçados.
A mudança ilustra um dos outros possĂveis objetivos de Kagame com o acordo: ganhar apoio internacional em acusaçÔes de violaçÔes, inclusive no caso de resoluçÔes contra o paĂs africano sejam apresentadas no Conselho de Segurança da ONU.
â Ă uma forma de ganhar uma vantagem, especialmente tendo dois membros do Conselho apoiando Ruanda, particularmente em vĂĄrias alegaçÔes contra abuso de direitos humanos â pontuou Gitinywa, referindo-se ao Reino Unido e Ă França, membros permanentes do conselho.
Ă difĂcil ter uma visĂŁo clara do que os ruandeses pensam, mas a chegada de mais imigrantes pode gerar preocupaçÔes. O paĂs tem uma taxa de desemprego de 16,5%, com cerca de 70% da populosa nação trabalhando com agricultura. Muitos apontam que, apesar do impressionante desenvolvimento de Kigali, ĂĄreas mais perifĂ©ricas nĂŁo acompanharam o avanço.
Entre alguns ruandeses, uma opiniĂŁo que emerge Ă© a expressa pelo jornalista Vincent Gasana na Africa Report: âComo um povo que jĂĄ foi o maior contribuinte de refugiados do mundo, Ă© um artigo de fĂ© que Ruanda sempre acolherĂĄ quem precisa de refĂșgio.â
Enquanto uns apontam os interesses de Kagame por trås do acordo e outros aplaudem a recepção dos necessitados, hå muitos que também veem o episódio como "uma manifestação de neocolonialismo".
â Os paĂses ocidentais ricos tendem a escapar de suas obrigaçÔes sob o direito internacional Ă s custas dos paĂses pobres â apontou Gitinywa. â Eles deveriam trabalhar em como lidar com os fatores de pressĂŁo que levam essas pessoas a fugir de suas casas.