Entenda por que tanta gente larga tudo e foge para o mato na literatura da pandemia

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Um pouco de vento fresco. O sol que pinica um pouco. O canto dos påssaros. A quietude. Tenho de deixar que o campo me preencha e me ensine", escreve o protagonista de "Planícies", romance de Federico Falco. "Era um espaço onde podia encontrar a mim mesmo. Era um espaço onde podia me ler."

É um livro introspectivo e delicado de um autor argentino, mas que encontra rima numa obra que resvala no thriller e foi publicada quase ao mesmo tempo do outro lado do mundo.

"Ser outro é um alívio. Escapar da própria vida", pensa o homem aflito que conduz "A Boa Sorte", da espanhola Rosa Montero. "Destruir o feito. O malfeito. Se pudesse ao menos formatar sua memória e recomeçar do zero."

De maneiras diferentes, os dois personagens tomam a decisĂŁo radical de sair de casa, deixar sua cidade e se afastar das pessoas que conhecem, numa busca meio angustiada, meio serena, de encontrar quem realmente sĂŁo.

Os livros se alinham a uma sensibilidade particular dos anos de pandemia, que forçaram as pessoas a se confrontarem consigo mesmas —querendo elas ou não. Nisso, muita gente repensou sua rotina e deu viradas bruscas de emprego, endereço ou relacionamento.

Federico, que carrega o mesmo nome de seu autor, reage ao término inexplicåvel de uma longa relação se mudando para uma casa isolada no meio dos pampas. Um trabalho silencioso de plantio acompanha o processo doloroso da reconstrução de si mesmo.

Jå Pablo, de "A Boa Sorte", é mais abrupto. Durante uma viagem de trem pela Espanha, o arquiteto avista um endereço caindo aos pedaços e se instala, de supetão, no meio do nada. Os leitores só entenderão mais tarde o que provocou a decisão, mas quem nunca sonhou em reiniciar a vida por completo durante uma crise que atire a primeira pedra.

"A pandemia foi um grande momento para se sintonizar com seus verdadeiros desejos", diz Falco, em entrevista por videoconferĂȘncia. "Alguns estĂŁo agora aprendendo a retomar a cidade, mas para outros foi o empurrĂŁo que faltava para concretizar planos de sair de vez."

O escritor conta que o romance estava pronto antes do coronavĂ­rus —na Argentina, foi publicado em 2020, e chega agora como um dos lançamentos da nova coleção de literatura contemporĂąnea da AutĂȘntica. Mas, nesse meio tempo, "a vida que conhecĂ­amos mudou", o que catapultou sua recepção em termos de pĂșblico e prĂȘmios.

"Eu sentia que quase nĂŁo ia ter leitores", comenta ele, quase envergonhado. "Mas o mundo em que o romance foi escrito e aquele no qual foi publicado sĂŁo bastante diferentes."

Rosa Montero também diz que o impulso que leva seu personagem a sumir no mundo guarda relaçÔes com a pandemia "por alguma estranha razão". A espanhola estourou por aqui com "A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver", um mergulho ensaístico no oceano do luto, e este "A Boa Sorte" oferece outro tipo de reflexão sobre o que fazer quando a vida se desintegra.

"Pablo sofre uma catĂĄstrofe que o desbarata por completo. Quando sai do trem, ele sai de sua vida. É uma metĂĄfora bĂĄsica e Ăłbvia da existĂȘncia, o trem, que ele fica vendo passar sem poder participar. EntĂŁo decide descer, se reinventar e começar do zero, que Ă© um pouco o que nos aconteceu a todos."

Ao final do livro, perguntam a Pablo se ele sabe por que afinal desceu do trem. "E ele diz que não, que foi um reflexo, como alguém que tira a mão do fogo para não se queimar", comenta a escritora de 71 anos, de franja morena que cobre as sobrancelhas e braços cheios de tatuagens.

Esse processo de se cortar as raĂ­zes Ă© traumĂĄtico, o que serve tambĂ©m para Matilde, que a escritora mineira Marcela DantĂ©s posiciona no centro de outro romance da mesma leva de estreia do selo AutĂȘntica ContemporĂąnea.

"JoĂŁo Maria Matilde" Ă© a histĂłria de uma mulher que descobre que o pai, um portuguĂȘs desconhecido, deixou para ela uma herança ao morrer. Matilde entĂŁo deixa a mĂŁe doente e o namorado e viaja a uma cidadezinha minĂșscula, inspirada na vila de Óbidos, para entender quem era aquele homem —e, por consequĂȘncia, quem Ă© ela.

DantĂ©s, finalista do prĂȘmio Jabuti por seu livro anterior, "Nem Sinal de Asas", criou a trama numa residĂȘncia literĂĄria em Portugal hĂĄ cinco anos, mas sentiu a necessidade de ampla reescrita depois de passar pela maternidade e pela quarentena.

"Fiquei impressionada com o tanto de mudanças grandes que aconteceram na vida das pessoas. Algo que vem de um lugar desconhecido, mas forçou todos a saírem do modo automåtico e descobrirem coisas que nem sempre são fåceis de lidar."

A reclusa Matilde passa por uma turbulĂȘncia drĂĄstica, mas seu deslocamento geogrĂĄfico permite um autoconhecimento que dificilmente ocorreria de outra forma, segundo sua autora.

É notĂĄvel que todos os personagens alcancem suas epifanias em lugares ermos, habitados por quase ninguĂ©m. O repĂłrter pergunta a Federico Falco, de "PlanĂ­cies", se hĂĄ algo que sĂł conseguimos aprender sobre nĂłs mesmos no meio do campo.

O escritor diz que isso depende da biografia de cada um. Nesta narrativa especĂ­fica, os pampas serviram para reacender memĂłrias de infĂąncia. "Mas hĂĄ outras infĂąncias. Gente que se criou em cidades, no litoral, na selva amazĂŽnica. Cada um encontrarĂĄ sua paisagem."

Uma vez decidido o destino para onde fugir, os autores confiam no poder da literatura —na verdade, no simples ato de escrever— como ferramenta de reconstrução. "Contar uma histĂłria transforma quem a conta", escreve Federico. "E Ă s vezes a ficção Ă© a Ășnica maneira de pensar o verdadeiro."

No tĂ­tulo do livro de Montero, a boa sorte Ă© conseguir olhar o mundo de outro modo —mas sobretudo conseguir contar sua vida a si mesmo de outro modo.

"Porque os seres humanos somos narração", defende a espanhola, fervorosa. "Somos acima de tudo palavras em busca de sentido. O que nos afeta nĂŁo Ă© o que nos acontece, mas o que contamos a nĂłs mesmos sobre o que nos acontece. Se vocĂȘ muda o relato da sua vida, muda literalmente a sua vida."

PLANÍCIES

Preço R$ 57,90 (232 pågs.); R$ 40,90 (ebook)

Autor Federico Falco

Editora AutĂȘntica ContemporĂąnea

Tradução Sérgio Karam

A BOA SORTE

Preço R$ 69,90 (256 pågs.); R$ 44,90 (ebook)

Autor Rosa Montero

Editora Todavia

Tradução Fabio Weintraub

JOÃO MARIA MATILDE

Preço R$ 54,90 (160 pågs.); R$ 38,90 (ebook)

Autor Marcela Dantés

Editora AutĂȘntica ContemporĂąnea

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