A farra das vans licitadas no Rio: mapas de GPS mostram que linhas operam irregularmente
Vale o que estĂĄ escrito? No caso das vans do Rio, esse princĂpio nĂŁo pode ser aplicado sequer a veĂculos licitados, que compĂ”em o Serviço de Transporte PĂșblico Urbano Local (STPL), e possuem validadores integrados ao sistema do Bilhete Ănico Carioca e monitorados por GPS. Numa amostragem, mapas obtidos com exclusividade pelo GLOBO revelam que todos os 30 carros pesquisados, licenciados pela prefeitura, funcionaram irregularmente nos dias 26 de maio e 6 de junho. Registros de satĂ©lite dos locais de entrada de passageiros que pagaram com cartĂŁo constatam que as viagens desobedeceram o itinerĂĄrio. Em nove delas, 100% dos embarques ocorreram fora da rota determinada.
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O que se vĂȘ nos mapas Ă© observado tambĂ©m nas ruas, apesar de a maioria dos trajetos ser monitorada â das 2.003 vans licitadas, pouco mais de 10% (252) estĂŁo sem transmitir sinal, segundo a Secretaria municipal de Transportes (SMTR). Apesar de essas vans terem GPS desde a instalação dos validadores, a partir de 2013, sĂł no Ășltimo dia 6, o equipamento começou a ser usado pela Secretaria Especial de Ordem PĂșblica (Seop) para autuar carros que realizam percursos diferentes dos autorizados.
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Multas, no entanto, nĂŁo tĂȘm colocado esses veĂculos no rumo certo. De todos os meios de transporte pĂșblicos municipais sĂŁo, justamente, as vans licitadas que levam mais tempo para quitar dĂ©bitos por infraçÔes flagradas: em mĂ©dia, 408 dias. Das 1.394 multas aplicadas em 2021, por infringir o cĂłdigo disciplinar do STPL, 76,9%, jĂĄ vencidas, nĂŁo foram pagas.
Um dos mapas obtidos pelo GLOBO constata, por exemplo, que uma van da linha GardĂȘnia Azul- Taquara, que passa por Rio das Pedras, muda o trajeto, seguindo pela Estrada do ItanhangĂĄ, para embarcar e desembarcar passageiros que vivem nas comunidades da regiĂŁo. TambĂ©m Ă© fĂĄcil flagrar vans licenciadas junto Ă estação do metrĂŽ do Jardim OceĂąnico e ao longo da Avenida das AmĂ©ricas, na Barra, apesar de, nessa autoestrada, a circulação ficar restrita ao Recreio.
JĂĄ na Ilha do Governador, um veĂculo, que deveria fazer a linha Ribeira-Cacuia, no dia 6, pegou passageiros nos BancĂĄrios, no Jardim Guanabara e no GaleĂŁo. Na Zona Sul, as duas Ășnicas linhas autorizadas (SĂŁo Conrado-Jardim de Alah, via Rocinha e Avenida Niemeyer) estendem seus percursos, sendo que vĂĄrias colocaram o nome Copacabana na carroceria. NĂŁo Ă© raro encontrĂĄ-las no Posto 3, circulando pelos principais corredores do bairro: avenidas AtlĂąntica e Nossa Senhora de Copacabana e Rua Barata Ribeiro. Mas o GPS de uma delas mostrou que Ă© possĂvel ir alĂ©m: passageiros validaram o bilhete em bairros mais distantes, como Laranjeiras, Catete e Centro. Ă o grito do cobrador que indica aos usuĂĄrios o destino dos carros.
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O fato Ă© que as chamadas vans legalizadas, assim como as piratas, que somam cerca de 10 mil veĂculos, conforme levantamento feito por consĂłrcios de ĂŽnibus no ano passado, operam sem freios, especialmente nas zonas Norte e Oeste. Porta-voz do Rio Ănibus â sindicato que representa as empresas â, Paulo Valente diz que o setor acredita que as vans jĂĄ sejam o principal sistema de transportes sobre rodas do Rio, levando atĂ© 60 milhĂ”es de passageiros por mĂȘs:
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â As vans transportam hoje mais de 50% dos passageiros que anteriormente eram transportados pelos ĂŽnibus. Essa realidade afeta diretamente o equilĂbrio econĂŽmico-financeiro do sistema, prejudicando ainda a mobilidade urbana, jĂĄ que hĂĄ casos de ĂŽnibus impedidos de circular em certas regiĂ”es da cidade.
ItinerĂĄrios Ă parte, nĂŁo Ă© raro encontrĂĄ-las circulando por faixas exclusivas de ĂŽnibus e tĂĄxis (BRSs), com passageiros em pĂ© e de porta aberta. De janeiro a maio deste ano, a central 1.746, da prefeitura, registrou 395 reclamaçÔes, contra 275 em igual perĂodo do ano passado. Lideram as queixas a circulação em local nĂŁo autorizado/parar em ponto irregular; a conduta de motoristas; a nĂŁo aceitação do Riocard e da gratuidade; e a prĂĄtica do transporte clandestino.
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â Depois das 22h, a qualidade dos carros cai bastante. Praticamente nĂŁo hĂĄ fiscalização diminui, e os veĂculos piratas tomam conta. Esse Ă© justamente um horĂĄrio que em vocĂȘ tem muito pouco ĂŽnibus. NĂŁo dĂĄ para ficar parado num ponto esperando um ĂŽnibus que nĂŁo se sabe se vai passar â diz o estudante Pedro Matos, de 22 anos, morador de Maria da Graça.
JĂĄ um motorista de Rio das Pedras cita o lado perverso do controle de vans por grupos criminosos. Segundo ele, o âpedĂĄgioâ semanal cobrado por milicianos da comunidade, para que possam parar na comunidade, varia conforme o tipo de veĂculo e o destino:
â A milĂcia cobra R$ 190 dos carros com licença que vĂŁo para a Freguesia; dos que passam pelo ItanhangĂĄ, Jardim OceĂąnico e Barrashopping, R$ 210, e dos que chegam Ă GĂĄvea, R$ 250.
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Os piratas, que operam mais Ă noite e nos fins de semana, diz ele, precisariam desembolsar R$ 180 para a milĂcia de Rio das Pedras. E se quiserem pegar passageiros na Rocinha, acrescenta, seriam mais R$ 250 de âpedĂĄgioâ para PMs. Por e-mail, a Secretaria de Policia Militar informa que âo comando da corporação pune com rigor possĂveis desvios de condutaâ e que a denĂșncia estĂĄ sendo encaminhadas Ă corregedoria da corporação.
Ă preciso pagar ainda, afirma o motorista, R$ 50 semanais para âbatedoresâ em motocicletas, que acompanham carros de agentes, repassando informaçÔes aos motoristas. De acordo com a Seop, tais âolheirosâ criam dificuldades para a ação da fiscalização.
âBatedoresâ dĂŁo o alerta
No estado, Ă© na cidade do Rio que concentram mais relatos ao Disque DenĂșncia envolvendo o transporte alternativo. Das 46 denĂșncias, feitas entre janeiro e 6 de junho, 26 se referiam Ă capital. Uma delas, encaminhada Ă polĂcia para que seja investigada, dĂĄ conta de que um ponto de kombi clandestino na Rua JordĂŁo, na Taquara, Ă© controlado por um miliciano, preso recentemente, de dentro do presĂdio. LĂĄ, o preço da passagem custaria R$ 4 ou R$ 8, conforme o destino do passageiro. Outro relato informa que, numa praça do Caju, funcionaria o Caju Vip Car, ponto de transporte irregular operado pelo trĂĄfico local. Conforme mais um denunciante, na Rua Sargento de MilĂcias, na Pavuna, funcionaria uma oficina de vans roubadas, usadas pelo transporte alternativo.
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A prefeitura começou a licitar as vans em 2009, mas o processo ainda nĂŁo se encerrou. AlĂ©m dos 2.003 veĂculos litados, outras 1.096 vans estĂŁo autorizadas a circular sem trajeto definido e sĂł na Zona Oeste, amparadas por uma lei de 2002. A secretĂĄria municipal de Transportes, MaĂna Celidonio afirma que a intenção Ă© concluir o processo licitatĂłrio das vans no mais tarde em 2023. Ela ressalta, porĂ©m, que o mais adequado neste momento Ă© a regularização das linhas de ĂŽnibus para que o municĂpio âpossa modelar e entender qual Ă© o papel complementar das vansâ.
â Por definição, a van Ă© um modal complementar. Ela alimenta o ĂŽnibus, um modal com maior capacidade. Com a falta de ĂŽnibus nas ruas, o complementar acabou virando o transporte principal.
Para o diretor da FGV Transportes, Marcos Quintella, o impacto dos veĂculos ilegais e seu crescimento refletem a ineficiĂȘncia do transporte pĂșblico urbano regulado:
â AlĂ©m da pĂ©ssima qualidade dos veĂculos que atendem, sobretudo as zonas Norte e Oeste, existe ainda uma questĂŁo fundamental que Ă© a capilaridade. Ou seja, a malha atual nĂŁo cobre todo o territĂłrio.