Como remover um presidente: autor de livro sobre impeachment analisa manifestações de 7 de Setembro
Livro "Como remover um presidente" explica história do impeachment e quais fatores podem catalisar o processo
Livro resgata histórico do impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff
Para autor, "esse dia 7 pode ser muito determinante sobretudo para deixar claro qual o custo político que a gente vai pagar por tolerar os problemas do Bolsonaro"
Por conta de uma gestão desastrosa da pandemia da Covid-19 e um flerte frequente com a ideia de um golpe em suas declarações, o debate sobre um processo de impeachment sempre rondou o governo de Jair Bolsonaro. Esse dispositivo político tão conhecido dos brasileiros é o objeto de análise do livro "Como remover um presidente".
Em 450 páginas, Rafael Mafei conta a história do impeachment enquanto um dispositivo jurídico e explica como um processo de remoção de um presidente pode ser facilitado ou barrado por diversos fatores sociais. Passando pelos processos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, colocando em perspectiva a história do impeachment e a relação com processos em outras democracias, como a dos Estados Unidos, a obra é um apanhado bastante completo sobre o assunto.
"Decidi que ia estudar impeachment quando o processo da Dilma despontou. Achei que eu precisava entender melhor o instituto do impeachment porque em algum momento precisaria ter alguma opinião sobre aquilo", diz o autor, que é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisador do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo).
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"Ao estudar o tema constatei que apesar de ter havido o impeachment do Collor, não havia muita bibliografia relevante sobre o impeachment no Brasil. Porém, havia boa bibliografia internacional que ajudava a gente a entender pelo menos a lógica do funcionamento do dispositivo, portanto ainda havia material para ser estudado", diz o professor.
Com a perda de apoio frequente, Jair Bolsonaro passou a inflamar apoiadores através de declarações agressivas nas últimas semanas. As manifestações de apoio ao presidente marcadas para esta terça (7) em Brasília e São Paulo tomaram a atenção do país e reacenderam as discussões sobre o aprofundamento da crise no Brasil e a possibilidade de um impeachment.
Nessa entrevista ao Yahoo Notícias, Rafael Mafei, autor de "Como remover um presidente" falou sobre a relação da democracia brasileira com o processo de impeachment de um presidente e o poder das manifestações em prol do governo como um catalisador do momento político que vive o país.
Essencialmente, quais os fatores jurídicos e políticos envolvidos na criação de um processo de impeachment e qual a relação entre eles?
O fundamento do impeachment é o crime de responsabilidade. Isso é independente da presença de determinantes sociais que fazem com que o impeachment tenha sucesso ou não. Um presidente pode ter cometido um crime de responsabilidade, mas deixará de ser removido do cargo se essas variáveis sociais não estiverem presentes. Como é possível também existir presidentes que não tenham claramente cometido um crime de responsabilidade, mas que estejam encurralados pelas determinantes sociais: impopularidade, problemas econômicos, desarranjo no congresso, grandes escândalos que fazem com que a sua remoção não possa esperar pela próxima eleição e um quinto fator que é a figura do vice-presidente. O vice tem a ver com essa coalização do congresso, porque o congresso se anima para apostar em um impeachment quando ele sabe que a pessoa que vai substituir quem estiver no cargo vai representar algum ganho, de qualquer natureza. A diferença entre a fundamentação jurídica e os fatores políticos diz respeito não só à viabilidade do impeachment, mas também à legitimidade do processo. O processo só é legítimo se há crime de responsabilidade e só é eficaz quando esses fatores sociais estiverem presentes.
Como você mencionou, a figura do vice pode ser importante em um impeachment. Nesse caso, o vice-presidente Hamilton Mourão não pode ser encarado como "mais do mesmo", por ser também militar?
Acho que por um lado sim. Não haveria a objeção que foi feita ao Temer, de que haveria uma mudança ideológica no governo e que era um projeto que não havia sido referendado pelas urnas. Quem vai poder dizer que o eleitor que votou em um governo presidido por uma ideologia militarizada, conservadora e anti política internacional vai se sentir traído porque teve o Mourão ocupando a cadeira da presidência? Nesse sentido, a guinada político-ideológica é muito menor do que a substituição da troca da Dilma pelo Temer, ou do Itamar pelo Collor. Onde acho que Mourão é diferente do Bolsonaro é a confiança que o congresso tem nele. Bolsonaro representa o Centrão, sempre foi um deputado do baixo clero que chegou mais longe do que a média.
Mourão pode então significar mais turbulência com o congresso por ser menos político?
A relação que Bolsonaro tem com o congresso é mais previsível do que aquela que o congresso pode ter com Mourão, que, sim, é um estranho para eles. Bolsonaro em uma situação de crise quando teve que escolher entre ficar ao lado do comando militar ou ao lado do congresso, ficou ao lado do congresso e trocou o comando militar. Não existe muita certeza de que Mourão faria o mesmo. Seria um governo muito mais imprevisível para os parlamentares que receberam de Bolsonaro a chave do cofre para emendas e projetos. Talvez Mourão represente um ganho para os militares porque deixariam o governo em 2022 com uma figura menos corrosiva para a imagem da instituição. Ainda assim, o exército não parece estar disposto a um processo de impeachment e mesmo o próprio Mourão não se apresenta tanto ao cargo, diferente do que fizeram Temer e Itamar. O Mourão, a impressão que dá é que é um cadáver político andando em Brasília pensando no que vai fazer em 2023.
Qual pode ser a importância das manifestações desta terça-feira para um possível impeachment de Jair Bolsonaro?
Esse 7 de Setembro pode acrescentar novos fundamentos possíveis a um conjunto que está longe de ser vazio. Há condutas do Bolsonaro que muito claramente permitiriam a fundamentação jurídica da sua remoção. A gente pode observar o que vai acontecer, se vamos ultrapassar um nível de degradação institucional em que a violência deixa de ser uma ameaça e passa a ser uma realidade. Isso pode ter um impacto político, porque fica ainda mais claro para um número maior de pessoas que a opção de deixar Bolsonaro delinquindo no cargo até o fim do mandato não é uma alternativa.
E qual pode ser o custo político dessa violência?
O custo dela, se essa violência se tornar uma realidade, vai ser muito mais alto, porque se isso passar a fazer parte do jogo, os resultados do processo político de 2022 vão se tornar imprevisíveis. Qual a garantia de que no dia 1º de Janeiro de 2023 haverá uma transição? Isso sem contar o que nem deveria fazer parte do jogo político: ameaça a juiz, militar opinando sobre sistema eleitoral… Além disso, o uso da violência como uma ferramenta política. A violência que é uma ameaça real não é o exército dar um golpe com tanques na rua, como aconteceu em 1964. A ameaça são apoiadores exaltados, meia dúzia de militares extremados, indisciplinados, que estão dispostos a radicalizar e que não aceitam nenhum tipo de moderação. Enfim, acho que esse dia 7 pode ser muito determinante sobretudo para deixar claro qual o custo político que a gente vai pagar por tolerar os problemas do Bolsonaro por mais um ano e meio.
O Brasil teve dois impeachments desde a redemocratização. O que isso diz sobre a democracia brasileira?
É preciso colocar o impeachment dentro do universo ao qual ele pertence, que é o das maneiras às quais o mandato de um presidente é prematuramente interrompido. Quais são os outros elementos que fazem parte do grupo? Renúncias, golpes, arranjos políticos que levam a afastamentos emergenciais e, claro, assassinatos. A América Latina é um continente politicamente instável. O impeachment é uma das formas de manifestação dessa instabilidade. Portanto, não somos uma fruta exótica no pomar da América Latina. Claro que não somos os Estados Unidos ou o Canadá, ou a Dinamarca. Somos o que somos. E do ponto de vista da estabilidade política não sei o quanto deixar de recorrer a um impeachment cabível, quando ele é necessário e viável, diz muito sobre a nossa democracia. Os Estados Unidos tiveram duas acusações de impeachment contra Donald Trump, e tiveram também um presidente assassinado no cargo. O que isso diz sobre a democracia americana? Momentos de inflamação política, diversos países tem e a América Latina tem muito mais. Não sei o quanto a existência do impeachment por si só nos desprestigia mais do que manter no cargo um presidente que se tornou mundialmente conhecido como um delinquente político contumaz.
E o que podemos aprender com esses impeachments que aconteceram aqui?
É importante entendermos que o impeachment é uma solução extrema e que a sua adoção sempre vai trazer custos. Tem outra visão importante que é sabermos o valor que uma ameaça genuína de impeachment tem para refrear presidentes que insistem em testar os seus limites. Durante o processo de impeachment, o presidente forçosamente é colocado em modo de defesa. O medo de um impeachment força presidentes a fazer coisas que em circunstâncias normais eles não fariam. Dilma, por exemplo, promoveu uma série de mudanças quando a ameaça de impeachment se tornou concreta. Ela colocou um fiscalista mais ortodoxo no seu governo, que foi o Joaquim Levy como ministro da Fazenda, e promoveu uma série de mudanças para que as pedaladas fiscais passassem a aparecer na dívida pública. A Dilma de fato falou para o congresso: "eu entendi o recado". Ela não quis defender o Eduardo Cunha, mas topou fazer alterações na gestão fiscal. Um processo de impeachment que não condena o presidente, mas que o leva a sair da presidência não pode ser classificado como um impeachment fracassado. Entretanto, quando se faz o que fez Rodrigo Maia e o que faz Arthur Lira, que é deixar claro que não importa o que aconteça, não haverá impeachment, que recado é dado para o presidente? É como um juiz de futebol, em uma final de campeonato, chamar todos os jogadores antes do jogo e falar: "pessoal, esqueci o cartão vermelho em casa. Bom jogo". O que vai acontecer nessa partida? Há um erro em medir o sucesso do impeachment apenas pela condenação. Ele tem efeitos pelo simples fato de ser uma ameaça real e do poder de ameaça, da qual abrimos mão, especialmente por parte dos presidentes da câmara.
No Brasil o presidente responde por impeachment afastado, enquanto nos Estados Unidos ele continua no cargo. Para além da articulação política, qual a melhor maneira de se conduzir o impeachment?
A grande diferença entre a deles e a nossa está menos no desenho do impeachment e mais no desenho do sistema eleitoral. Lá, na prática, leva a hegemonia de dois grandes partidos. Isso faz com que quando você precise de ⅔ do senado para uma condenação, você precise sempre contar com votos do partido do próprio presidente para que a condenação seja feita. Logo, o nível de consenso de que o presidente foi longe demais é muito alto. Isso, para mim, explica porque eles nunca tiveram um impeachment, embora a barra para que a acusação seja mais baixa, porque é necessária apenas a maioria simples e, muitas vezes, o partido adversário consegue sozinho garantir isso. No nosso caso temos uma legislação quase que deliberadamente construída para ser muito fragmentada e possibilitar a existência de partidos médios e pequenos que não tem nenhuma representação ideológica genuína, mas que são pequenos partidos que funcionam muitas vezes, por exemplo, como partidos de aluguel. O custo para um presidente se manter no cargo e conseguir governar de maneira eficaz aqui, para que ele consiga aprovar projetos, é maior. Essa fragmentação partidária nos ajuda a entender as diferenças de funcionamento do impeachment aqui e lá e também nos ajuda a compreender a dificuldade de se governar aqui. Então, ao invés de apontar o dedo para o impeachment como o causador da nossa instabilidade, deveríamos observar qual a contribuição que tem esse sistema eleitoral que só interessa quem se alimenta da dificuldade.