Inteligência artificial é aliada de artista que 'materializa' filhos desaparecidos e mortos
O artista digital brasileiro Hidreley Leli Dião, viralizou na internet, em fevereiro do ano passado, com um trabalho em que “transformava” personagens de filmes e desenhos animados em seres humanos. Os Simpsons, as princesas, os príncipes e as bruxas — todos seguiram uma lógica que parece, a princípio, contraditória: se humanizaram através do uso da inteligência artificial. Regra que parece ser seguida à risca pelo artista, que trabalha para pais que, com os filhos desaparecidos ou já sem vida, veem na arte de Dião uma chance de "reencontrá-los".
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De fevereiro do ano passado para cá, sem nunca parar de compartilhar suas artes, o artista viu seu número de seguidores em uma rede social saltar de 7 mil para mais de 300 mil. De maneira autodidata, ele aprendeu o que define como um "mecanismo único": mescla o uso de três aplicativos com o Photoshop, um software de edição de imagens. Com isso, se tornou reconhecido e começou a ser procurado pelas polícias civis e por mães e pais ao redor do Brasil. O trabalho do artista passou ter, mais do que nunca, uma função social.
— Em colaboração com a Polícia Civil, faço progressões de pessoas que desapareceram há muitos anos e as imagino atualmente. Hoje, estou trabalhando com a Polícia Civil do Espírito Santo, que me passa alguns casos. No mês passado, fizemos um encontro de mães que perderam filhos há 20 ou 30 anos para mostrar o resultado dos 'rostos digitais' dos filhos delas, de como eles estariam. Elas conseguiram enxergá-los nas artes e foi muito emocionante — conta Dião.
— Mães e pais também me procuram bastante para que eu crie, através do meu trabalho, como estariam os seus filhos mortos no parto ou ainda crianças. Eu pego imagens dos pais e faço o trabalho com elas. Quando eles recebem as imagens, sempre conseguem identificar os rostos dos dois. Eles acreditam na minha arte. É muito emocionante — completa o artista.
'Só a inteligência artificial sozinha não faz nada'
Em seu perfil no Instagram, Dião compartilha os resultados dos seus trabalhos sempre acompanhados dos relatos com os seus pedidos. "Olá Hidreley, [...] essa mocinha da foto é minha irmã Sabrina, ela nos deixou em 09/02/92, tinha 6 anos. Foi uma dor muito grande. Já são 31 anos sem a nossa pequena e, no próximo sábado, é aniversário da minha mãe. Acho que ela ficaria muito feliz em ver como a Sabrina estaria hoje, com 37 anos", enviou uma seguidora, em fevereiro.
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Dião enviou a arte para ela. "Muito obrigada. Eu amei e certamente vai ser o melhor presente que eu poderia dar à minha mãe", a mulher o respondeu. Veja abaixo a foto enviada por ela e a arte criada por ele, lado a lado.
— Só a inteligência artificial, sozinha, não faz nada. Ela é usada por mim, claro, e ajuda, mas não resolve. Por trás dela, existe um grande estudo de rostos. Não é só digitar e de repente a arte aparece. O processo todo leva de 3 a 4 horas ou alguns dias para ser terminado. As habilidades são importantes para se chegar no resultado mais preciso possível — afirma o artista.
Para ele, a tecnologia da inteligência artificial veio para "acrescentar" e para "ajudar" a arte, e não para acabar com ela. O que é comprovado através do seu trabalho e da precisão alcançada com ele.
— Esse lado social do meu trabalho me inspira a continuar. Eu faço o meu trabalho com muito prazer porque sei o quanto ele ajuda as pessoas a acalentar os seus corações. Uma mãe falou para mim uma vez que se arrependia de não ter tirado uma foto da filha que morreu no parto, pois não tinha nenhuma recordação visual dela. Hoje, ela tem um pôster na sala de casa com uma arte de como seria a filha com 5 anos. Eu me dedico muito porque tem muito sentimento envolvido — diz.
Casais LGBTQIA+
"Atualmente, os casais homossexuais já podem procriar normalmente, graças às técnicas de reprodução assistida. Ou seja, homens e mulheres, em relacionamentos homoafetivos e boas condições de saúde, podem, sem qualquer restrição, realizar os tratamentos que viabilizam a concepção e gestação de um bebê. Minha curiosidade foi "matada" usando a inteligência artificial mais as minhas habilidades com o Photoshop!", publicou Dião em uma rede social, no dia 23 de fevereiro.
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Ele imaginou como seriam os filhos de sete casais LGBTQIA+: Ludmilla e Brunna Gonçalves, Daniela Mercury e Malu Verçosa, Fernanda Gentil e Priscila Montandon, Tiago Abravanel e Fernando Poli, Lulu Santos e Clebson Teixeira, Carlinhos Maia e Lucas Guimarães e Vitoria Strada e Marcella Rica. Veja abaixo o resultado desse trabalho.
Depois da divulgação desse trabalho, que chegou a ser compartilhado até por Lulu Santos, um dos homenageados, Dião conta que recebeu muitas mensagens de casais LGBTQIA+ que também queriam saber como seriam os filhos deles. Essas mensagens, no entanto, emocionadas e felizes, tiveram que dividir espaço com diversos comentários ofensivos e homofóbicos que a publicação também recebeu.
"Kkkkk lacração gratuita e desnecessária.... Tsc tsc", escreveu um internauta. "Que viagem, forçou demais", comentou outro. "Confesso que é bem desconfortável aplicar sua bela arte em algo que vai em desencontro da criação do pai celestial", disse uma terceira.
— Quando fiz essa publicação com os filhos de alguns casais LGBTQIA+, sabia que receberia muitas críticas negativas. Resolvi não apagar esses comentários ofensivos, preconceituosos e homofóbicos porque comecei a perceber que alguns seguidores meus estavam indo lá e respondendo cada um deles. E eles tiveram as respostas que precisavam. Então considero essa publicação muito importante por isso — relata o artista.
Enquanto fala ao GLOBO, Dião termina seu mais recente projeto, a ser compartilhado, como de costume, nas redes sociais. No modelo do que fez com os casais de filmes e séries estrangeiras, o artista está criando, agora, os rostos de como seriam os filhos de casais da ficção de novelas e seriados da TV Globo.