Janaína Paschoal deveria mirar o exemplo da Irmã Dulce
Quem conta a história é o amigo Graciliano Rocha, jornalista, escritor e autor de “Irmã Dulce, a santa dos pobres”.
Em seu Twitter, Graciliano lembrou da luta da freira baiana para poder atender pessoas doentes em situação de rua na cidade de Salvador (BA) entre os anos 1930 e 1940. Esta luta envolvia embates recorrentes com as autoridades locais.
Irmã Dulce não tinha um local para acolher os doentes, que eram atendidos nas ruas, em casas ocupadas e até em um mercado de peixe desativado, que lhe rendeu um jogo de gato e rato com a Prefeitura de Salvador. Por ordem do prefeito da época, ela foi obrigada a desocupar o mercado abandonado e levou os doentes aos arcos da Colina Sagrada, uma via recém-construída que levava à Igreja do Senhor do Bonfim. As moradias foram improvisadas com paredes feitas de caixas de compensado entre as colunas.
Ao transferir os doentes para os arcos, Irmã Dulce comprou uma nova briga com o prefeito Wanderley Pinho. A revitalização do acesso à Igreja do Senhor do Bonfim era um dos “presentes” do aniversário de 400 anos de Salvador.
Conta o biógrafo da freira baiana: “Depois de várias advertências de funcionários da prefeitura, Irmã Dulce foi visitada pelo próprio prefeito. O tom não era nada amistoso. Wanderley Pinho disse que estava errado abrigar os doentes naquele cartão-postal da Bahia. ‘O doutor então me arranje um lugar’, replicou Irmã Dulce. Mas o prefeito não se intimidou e ralhou com ela, dando um ultimato para que tirasse os desabrigados de lá. A solução definitiva veio no início de 1949. Irmã Dulce pediu à superiora da congregação em Salvador para usar o galinheiro que ficava ao lado do convento Santo Antônio. Era apenas um puxadinho precário, onde as freiras criavam algumas poucas galinhas. Foi o embrião de seu hospital. Ninguém se lembra de Wanderley Pinho, mas a desobediência de Irmã Dulce às autoridades constituídas foi reconhecida como traço de sua santidade, reconhecida pela Igreja em 2019, quando foi canonizada pelo papa Francisco. Padre Julio será lembrado no futuro. E a deputada?”
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A pergunta era uma referência à deputada Janaina Paschoal (PSL-SP), que no sábado 7, também no Twitter, criticou a distribuição de alimentos na Cracolândia, organizada por lideranças como Padre Júlio Lancellotti e sua Pastoral do Povo da Rua de São Paulo. “Só ajuda o crime”, sentenciou.
No mesmo dia, soldados da Polícia Militar haviam intimidado os agentes do coletivo na região da Luz. A ideia era interromper a entrega de comida às pessoas no local.
“As pessoas que moram e trabalham naquela região já não aguentam mais”, escreveu a deputada, para quem o padre e os voluntários “ajudariam se convencessem seus assistidos a se tratarem e irem para os abrigos”.
Segundo ela, “alimentar no vício só estimula o ciclo vicioso”.
Padre Júlio respondeu: “o que favorece o crime ali não é a comida, que grupos religiosos ou não religiosos levam. O que apoia o crime é a corrupção e o crime organizado, aquele que tem a participação de agentes de Estado”.
Para ele, matar as pessoas de fome não resolveria o problema.
Irmã Dulce certamente concordaria. O enfrentamento entre o verdadeiro dever cristão e os fariseus e doutores da lei de seu tempo nunca saiu de moda. Seja na Bahia dos anos 1930, na São Paulo dos anos 2020 ou na Velha Jerusalém.
Como escreveu outro amigo, o também jornalista Thiago Varella, mesmo que alguns queiram, não é possível encontrar na Bíblia qualquer passagem em que Jesus tenha mandado dar de comer aos famintos, “contanto que quem tenha fome não seja usuário de drogas e não atrapalhe os moradores dos Campos Elísios”.