Livro para viajar: como tornar a jornada mais rica com um bom exemplar na bagagem
Agora que muita gente estĂĄ fazendo planos de voltar a viajar, ou pelo menos tentando, Ă© hora de pensar em uma questĂŁo para lĂĄ de interessante: o que ler nas fĂ©rias? Cada um tem um mĂ©todo, e o meu se definiu no fim de um fim de semana do recesso, no tempo em que ainda estava no ensino mĂ©dio, nos anos 70, quando minha amiga Michelle e eu enchĂamos a cara de pretzels na perua dos pais dela, durante a viagem longa e tediosa de Massachusetts a Nova York.
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O fim das fĂ©rias Ă© sempre motivo de tristeza. NĂŁo havia celular na Ă©poca para nos distrair, e a escuridĂŁo nos impedia de paquerar os meninos bonitos nos outros carros. A monotonia estava acabando conosco como fez com as irmĂŁs em "Pursuit of Love", de Nancy Mitford, querendo saber o tempo todo que horas eram. O que nos salvou foi o Ășnico livro que Michelle colocara na mala, em um momento literĂĄrio iluminado: "The Silver Crown", de Robert C. O'Brien.
Ler aquele romance naquele carro naquele momento transformou uma das piores partes da viagem â ou seja, a viagem em si â em um intervalo de puro deleite. Conta a histĂłria de uma menina que ganha uma coroa reluzente no dĂ©cimo aniversĂĄrio e a partir de entĂŁo Ă© perseguida por figuras misteriosas com intençÔes nefastas. Ele nos encantou e nos assustou. NĂłs nos revezamos na leitura Ă luz da lanterna â Michelle lia um capĂtulo, depois eu, passando o livro de lĂĄ para cĂĄ, as duas esparramadas no espaço entre as malas e as sacolas de compras do nosso forte, sem cinto de segurança, lĂĄ no fundĂŁo do porta-malas.
NĂŁo me lembro do que fizemos no resto do fim de semana, mas foi a melhor viagem de carro que eu tinha feito atĂ© entĂŁo, e consolidou para sempre na minha cabeça a ideia de que um livro de fĂ©rias nĂŁo precisa ter nada a ver com o lugar em que vocĂȘ se encontra, podendo inclusive ser o destino em si.
Ao afastar sua mente dos problemas e obrigaçÔes naqueles momentos roubados entre uma atividade e outra â a espera no portĂŁo para o embarque, a viagem no fundĂŁo do ĂŽnibus de uma cidade para outra, deitado na cama, insone, na primeira noite de briga com o fuso horĂĄrio em um paĂs distante â, a leitura tem o poder de fazĂȘ-lo voltar a ser quem Ă©. TambĂ©m Ă© remĂ©dio para o tĂ©dio, doma a ansiedade e oferece estabilidade e constĂąncia.
Mas nem todo mundo vĂȘ o livro como uma tĂĄbua de salvação. Para meu marido, por exemplo, a leitura de fĂ©rias â idealmente feita no esparramo da espreguiçadeira, ao lado de um corpo d'ĂĄgua de movimentos suaves â Ă© a Ășnica ocasiĂŁo em que pode realmente mergulhar em um livro sem culpa. Tem os que gostam de combinar o material com a viagem em si. Acho que estes estĂŁo de parabĂ©ns, e, se eu fosse menos desorganizada, faria o mesmo. Quer coisa melhor para deixar aquela viagem ao Marrocos ainda mais interessante do que enxergĂĄ-la atravĂ©s dos olhos experientes de Paul Bowles? E oportunidade mais preciosa de compreender as origens da ItĂĄlia moderna do que lendo "O Leopardo", de Giuseppe Tomasi di Lampedusa?
Qualquer um que estiver pensando em explorar o sertĂŁo da AustrĂĄlia Oriental a pĂ© â ou qualquer mulher que quiser fazer a viagem sozinha â vai se sentir mais inspirado ao ler "Trilhas", em que Robyn Davidson descreve sua excursĂŁo Ă©pica de Alice Springs ao litoral, acompanhada de um cĂŁo e quatro camelos. Viajar a Londres depois de ler Charles Dickens Ă© pura diversĂŁo, e nĂŁo sĂł pelo seu estilo, mas por sua geografia. (Que maravilha percorrer a verdadeira Chancery Lane depois de ler sua descrição inesquecĂvel em "A Casa Soturna".)
TambĂ©m tem os prĂłprios escritos de viagem, obras clĂĄssicas de autores do gĂȘnero, como Jan Morris, Ryszard Kapuscinski, Patrick Leigh Fermor, Paul Theroux, Rebecca West e HerĂłdoto, que levam os leitores a fazer duas jornadas de uma vez sĂł. Uma Ă© a fĂsica e intelectual, obviamente, na PolĂŽnia, na GrĂ©cia, ou em Veneza, pela histĂłria desses lugares.
A segunda Ă© a emocional. "Os melhores escritores de viagem nĂŁo escrevem absolutamente nada sobre a atividade em si; na verdade, registram os efeitos dos lugares e movimentos sobre o prĂłprio temperamento, falando da experiĂȘncia e nĂŁo do evento, fazendo para isso uso literĂĄrio de um caso de amor, um enigma ou uma tragĂ©dia", explica Morris.
Ele também fez a distinção entre "o pùntano criativo e traiçoeiro chamado ficção" e o realismo alterado reforçado dos textos de viagem, "a união do conhecimento e das sensaçÔes, da natureza e do intelecto, da visão e da interpretação, do instinto e da lógica".
Essa é uma maneira de dizer que os melhores escritores de viagem fazem o mesmo que os melhores escritores de narrativas não ficcionais, melhorando as coisas pela forma como as descrevem. (à uma boa técnica para quem estå fora de casa. Quando visito Londres e me vejo como convidada em um jantar sofisticado, cheio de homens intelectualmente arrogantes e intimidadores, por exemplo, relaxo me imaginando no meio de um romance de Jane Austen.)
Que livros vocĂȘ lĂȘ em suas viagens? Geralmente, escolho os meus da mesma forma como a noiva escolhe os acessĂłrios, na base do "algo velho, algo novo". Assim: um livro contemporĂąneo que venho guardando meio como recompensa â este ano talvez seja "The Candy House", de Jennifer Egan â, e um que venho querendo ler, mas ainda nĂŁo tive oportunidade â quem sabe "O TrĂąnsito de VĂȘnus", de Shirley Hazzard.
A dobradinha pode ser tambĂ©m um suspense absorvente e um velho amigo que nos conforta, normalmente um livro infantil como "Charlotte's Web" ou "A BĂșssola de Ouro". E levo meu Kindle, que, como mecanismo de disponibilização literĂĄria, nĂŁo tem nada de divertido, mas que tem o benefĂcio de deixar a biblioteca do mundo ao alcance da mĂŁo.
Se acertar na veia, vocĂȘ vai desembarcar do aviĂŁo tĂŁo apaixonada pelo livro que vai querer continuar lendo na fila da alfĂąndega, na esteira de bagagem e, mais tarde, no hotel, para dar uma acalmada no corpo antes de tentar dormir.
O que me leva à minha segunda leitura favorita/lembrança de viagem, depois daquela que descrevi ali no começo. Foi em junho de 1985, e eu tinha acabado de me formar na faculdade. Não tinha emprego nem nada em vista, e não me sentia lå muito animada enquanto me preparava para embarcar no que deveria ser (e, no fim, acabaria sendo) uma aventura transformadora cruzando a Europa a bordo de um trem.
Eu tinha comprado uma passagem barata em um voo noturno para Paris, mas estava ansiosa e empolgada demais para dormir. Nem fez diferença o fato de que o livro que levara comigo â "O Caso Paradine", suspense rebuscado que Robert Hichens escreveu em 1933 e que conta a histĂłria de um advogado londrino casado e Ăntegro que se apaixona por uma cliente acusada de envenenar o marido â nĂŁo Ă©, pelos padrĂ”es mais objetivos, uma grande obra literĂĄria, porque a histĂłria Ă© Ăłtima. (Mais tarde Alfred Hitchcock o transformou em um filme estrelado por Gregory Peck, que em portuguĂȘs ganhou o nome de "Agonia de Amor".)
Fui fisgada jĂĄ na primeira linha: "Sir Malcolm Keane, Conselheiro do Rei, deixou o casaco forrado de pele na chapelaria do Cleveland Club, na esquina de Pall Mall, tirou o chapĂ©u preto macio, as luvas delicadas e o guarda-chuva cuidadosamente preso e se dirigiu ao imenso salĂŁo quadrado onde ardia um fogo enorme em uma lareira imponente." Cheio de descriçÔes detalhistas, altos dramas e emoçÔes intensas, foi perfeito para minha agitação febril. Na manhĂŁ seguinte, quando jĂĄ estĂĄvamos chegando, ainda lendo e com "And She Was" do Talking Heads a todo o volume no Walkman, eu me sentia exausta, mas entusiasmada â no estado de Ăąnimo perfeito para embarcar nas fĂ©rias em um lugar desconhecido.