Médicos lutam para criança baleada não perder perna, diz o pai; caso aconteceu em comunidade que teve tráfico denunciado por Dona Vitória
Maria Julia da Silva Gomes, de um ano e oito meses, que foi baleada na manhã desta sexta-feira na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Zona Sul do Rio, está passando por uma cirurgia no Hospital municipal Miguel Couto, no Leblon. A intervenção começou no fim da manhã. O pai da bebê, o mototaxista Júlio Cesar Pereira Gomes, de 30 anos, contou que uma médica disse para ele que a equipe está fazendo de tudo para evitar a amputação, mas alertou para o risco de a menina perder a pena esquerda, já que a bala está alojada numa parte bem sensível do corpo dela. A comunidade onde o caso aconteceu é a mesma denunciada há 17 anos pela aposentada de codinome Dona Vitória, que, da janela de seu apartamento, filmou ações do tráfico e levou à prisão de criminosos e de policiais. Em fevereiro deste ano, Joana Zeferino da Paz morreu aos 97 anos e a sua identidade foi revelada.
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— Fico abalado como pai e sem entender como isso aconteceu. A menina estava dentro de casa, dormindo comigo e com e com a mãe — disse.
Júlio contou que a menina dormia ao lado dele e da mãe. Segundo o mototaxista, a bala atravessou a janela do quarto entrou pela perna direita, altura do joelho, e se alojou na coxa esquerda. O pai contou que a filha ficou muito assusta e chorava muito. O caso aconteceu por volta das 5h:
—Ela não entendia nada e só chorava enquanto o sangue jorrava. Minha reação foi enrolar minha filha numa toalha e levar para a UPA de Copacabana, onde ela recebeu os primeiros socorros e depois foi encaminhada ao Miguel Couto — disse o mototaxista acrescentando que a bala rompeu uma artéria e atingiu o fêmur.
Maria Júlia é a caçula de quatro irmãos, sendo o mais velho com oito anos. Os outros três dormiam em outro quarto e não sofreram nada. Júlio contou que ele e a mulher costuma acordar por volta das 7h para levarem a filha mais nova para a creche e os mais velhos para a escola. Ele disse que por morar perto da UPP — a casa fica em frente à unidade — achava que estava mais seguro.
—A gente vê essas notícias diariamente na imprensa, mas nunca acha que vai acontecer conosco. E, infelizmente, acontece e minha filha entrou para a estatística.
Maria Júlia foi a nona criança baleada na Região Metropolitana do Rio até agora, de acordo com levantamento da plataforma Fogo Cruzado: três delas morreram e seis ficaram feridas. Ainda segundo a plataforma, em cerca de três meses, o número de crianças baleadas supera o acumulado de todo o ano passado.
Naquele período, o número de vítimas infantis dos tiroteios foi de oito crianças, quando duas morreram e seis ficaram feridas. Cinco foram atingidas durante ações ou operações policiais e dessas uma morreu e quatro ficaram feridas. O levantamento aponta ainda que de 1º de janeiro a 10 março de 2022, apenas duas crianças haviam sido baleadas: uma morreu e outra ficou ferida.
A comunidade dos Tabajaras, bem como o vizinho Morro dos Cabritos, recebeu nesta manhã uma operação de policiais militares da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) e da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Tabajaras/Cabritos. Segundo nota da Polícia Militar, a UPP foi informada que uma criança ferida sido ferida e socorrida na UPA de Copacabana, e transferida para o Hospital Miguel Couto.
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Já segundo a CPP, equipes policiais foram alvo de disparos de arma de fogo enquanto um veículo blindado se deslocava pelas comunidades. Uma base da UPP também sofreu ataques, segundo a PM, mas sem revide por parte dos agentes.
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Crime denunciado pelas lentes
A Ladeira dos Tabajaras é a comunidade para a qual as lentes de Dona Vitória, idosa moradora de Copacabana, se voltaram há quase 20 anos, quando, a partir de suas imagens, traficantes e policias corruptos foram presos. A verdadeira identidade de Joana Zeferino da Paz só foi revelada no último dia 23, quando a alagoana de 97 anos morreu.
A história foi descoberta pelo então repórter Fábio Gusmão, do jornal Extra, durante uma "ronda", em que buscava novidades que pudessem virar reportagens. À época, um agente contou a ele que uma aposentada tinha acabado de deixar oito fitas na Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil (Cinpol).
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Em 2023, 17 anos após as filmagens de Dona Vitória, a comunidade ainda continua influenciada pela mesma organização criminosa. Próximo ao Pavão-Pavãozinho, o Tabajaras é considerado estratégico pelo grupo criminoso que controla boa parte do tráfico no Rio, pois, a partir da comunidade, pode tentar dominar também o Chapéu Mangueira.
Diferentemente de outras comunidades que têm territórios com marcas da forte presença do tráfico, os acessos à Ladeira dos Tabajaras contam apenas com sinais discretos da presença de criminosos. É o caso de algumas pichações das iniciais de uma facção criminosa pintadas na saída do Túnel Prefeito Alaor Prata (mais conhecido como túnel velho) e em caçambas de lixo perto de uma escadaria da comunidade.
Em dezembro de 2009, PMs voltaram a ocupar o morro para a implantação de uma Unidade de Polícia pacificadora (UPP). Ela foi inaugurada em janeiro de 2010 e funciona até hoje. Com o trabalho feito pela aposentada, 34 pessoas foram presas. Do total, 26 foram condenadas.