Macron atropela votação na Assembleia para impor reforma da Previdência aos franceses

TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) - O presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu recorrer ao artigo 49.3 da Constituição, que permite aprovação de projetos de lei apresentados pelo governo mesmo sem a chancela parlamentar, para impor sua controversa reforma da Previdência aos franceses.

A decisão ocorreu em reunião com a primeira-ministra Elisabeth Borne e demais ministros no palácio Elysée, sede do governo em Paris, no início da tarde desta quinta (16), horas antes que o texto aprovado pelo Senado fosse submetido à Assembleia Nacional.

O dispositivo constitucional, de baixa densidade democrática, foi uma aposta radical do governo diante das incertezas sobre a votação na Assembleia de uma reforma tida como crucial para as finanças públicas e para a agenda reformista de Macron, mas que é altamente contestada por deputados e pela população.

Desde que foi apresentado pela primeira-ministra, em janeiro deste ano, a reforma provocou a articulação de uma junta intersindical inédita nos últimos 12 anos na França, que lançou uma campanha de greves e manifestações contra o texto e que levou milhares de franceses a protestar, paralisando serviços de coleta de lixo, educação, transporte público e geração de energia.

Apenas 23% dos franceses avaliam as propostas desta reforma da Previdência como "aceitáveis", segundo o instituto de pesquisa Ifop, um dos principais do país. Em 2010, quando a última reformulação previdenciária foi aprovada, esse índice era de 53%.

Outro levantamento do Ifop realizado nesta semana apontou que 78% dos franceses rejeitavam o uso do artigo 49.3 para aprovar as mudanças previdenciárias.

O artigo 49.3, que os franceses têm chamado de "número maldito", já foi acionado dez vezes por Borne desde o início de seu mandato, em 2022, sempre diante de impasses nas votações de projetos de lei no campo das finanças públicas.

A utilização deste dispositivo em um caso controverso e que mobilizou tantos franceses pode ter resultados explosivos nas ruas das grandes cidades da França, num contexto em que as jornadas de manifestações têm visto redução na adesão aos atos na mesma medida em que protestos têm se radicalizado.

Na tarde desta quinta, manifestantes se concentraram na porta da Assembleia Nacional para repudiar a decisão do governo, entre pilhas das mais de sete toneladas de lixo que se acumulam há 13 dias nas ruas da capital francesa por conta da greve dos garis contra a reforma.

Às 15h, horário previsto para o início da votação do texto pelos deputados, Borne chegou à casa e foi recebida pelo plenário sob vaias dos deputados de oposição. Enquanto parlamentares da França Insubmissa, partido de ultraesquerda de Jean-Luc Melenchon, cantaram o hino nacional da França durante o anúncio da medida pela primeira-ministra, deputados da Reunião Nacional, partido de extrema-direita de Marine Le Pen, puxavam gritos de "demissão".

"Alguns deputados desta casa fizeram de tudo para bloquear o debate dessa reforma necessária e, portanto, bloquear a própria democracia", disse a primeira-ministra no púlpito da Casa, que justificou o uso do artigo 49.3 como um ato de "responsabilidade do governo" para com o projeto.

De acordo com as regras de uso do artigo, foram imediatamente cancelados os trabalhos de debate parlamentar sobre o projeto na Assembleia, e Borne deixou o plenário sob novas vaias e gritos de "democracia".

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"Esse texto [da reforma] não tem legitimidade", declarou Melenchon entre manifestantes que lotaram a praça da Concórdia, perto da Assembleia, depois do anúncio de Borne.

O deputado do partido Republicanos Fabien Di Filippo, opositor da reforma apesar do apoio oficial de seu partido ao texto, declarou ao Journal Du Dimanche que "a adoção da reforma previdenciária sem votação é uma vergonha" e "uma negação da democracia" na França.

Questionada sobre uma possível queda da administração Borne, Marie Le Pen declarou ao canal de notícias BFM: "Isso me parece evidente. Trata-se de um fracasso total desse governo".

Deputados de oposição tentam, às pressas, articular uma aliança entre os partidos para a votação de uma moção de censura ao governo Macron. O instrumento, que precisa ser apresentado em até 24 horas após o evento a ser contestado, tem o poder de derrubar a primeira-ministra e rejeitar o texto sobre o qual ela evocou sua responsabilidade ao impor a aprovação automática por meio do artigo 49.3, derrubando a reforma da Previdência.

A moção de censura precisa de aprovação da maioria absoluta dos parlamentares (289) e, em caso de sucesso, Macron poderia, em reação, reconduzir Borne ao cargo ou mesmo dissolver a Assembleia Nacional.

Desde 1958, moções de censura não têm obtido votação suficiente para serem efetivadas e se tornaram um meio simbólico de manifestação do repúdio de deputados à ausência de debate parlamentar. Num caso envolto em tantas excepcionalidades, no entanto, como o da aprovação dessa reforma, todas as possibilidades seguem em suspenso.

Ao menos três partidos já anunciaram que vão apresentar monções de censura contra a ação do governo: França Insubmissa, Reunião Nacional (RN) e o pequeno Liot (Liberdade e Territórios). O porta-voz da RN, Sébastien Chenu, afirmou que o partido votará favoravelmente a todas as menções apresentadas. Apesar do Republicanos ter se posicionado contra essas moções, alguns deputados da sigla afirmaram que apoiarão o recurso parlamentar.

A reforma da Previdência eleva a idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos até 2030 e de prolongar os anos de contribuição dos franceses para acesso à pensão integral, de 42 para 43 anos, já a partir de 2027.

A reformulação também mexe nos chamados regimes especiais —aqueles dedicados a atividades consideradas mais penosas, como as de garis, bombeiros, policiais e enfermeiros, que podem se aposentar antes das demais categorias, teriam a idade mínima elevada de 57 para 59 anos.

Segundo o governo, a reforma vai representar uma economia de 18 bilhões de euros (cerca de R$ 101 milhões). Ela representa uma aproximação da França aos parâmetros adotados por outros países da União Europeia (UE) que já elevaram suas idades mínimas de aposentadoria. Este movimento é repudiado pelos franceses, que prezam a qualidade de seu sistema público de segurança social.

A França tem o maior gasto governamental do planeta, equivalente a 55% do Produto Interno Bruto (PIB), chegando aos 60% durante o enfrentamento da pandemia, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). No Brasil, os gastos do governo são de 45%.

O gasto francês com o sistema de aposentadorias é o maior do mundo rico, atrás apenas de Itália e Grécia, e consome cerca de 14% do PIB —montante que se aproxima do desembolso brasileiro somando-se União, estados e municípios.

Em nota, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), uma das maiores uniões sindicais do país, afirmou que foi a "luta dos trabalhadores que impediu que Borne obtivesse maioria para sua reforma de pensões" e que o recurso ao 49.3 "nos encoraja a ampliar as manifestações".