Mangueira é levada por samba apaixonante e embaralha disputa com Grande Rio; leia crônica da 1ª noite do Grupo Especial
A olho nu, aqueles 800 metros entre a Avenida Presidente Vargas e a Praça da Apoteose parecem uma pacata linha reta. Mas são, na verdade, pontilhados de curvas, recuos, avanços, trejeitos, meneios, idiossincrasias, lições. Terreiro de magias e mistérios, a Sapucaí prega peças, pulveriza previsões, reconstrói trajetórias num instante. Sempre para ensinar caminhos mais simples, próprios dos bambas. Em teoria, a primeira noite dos desfiles das grandes escolas de samba em 2023 tinha a campeã Grande Rio como dona da festa. Mas trocou de protagonista na cena derradeira, e consagrou a Mangueira. Conduzida por samba apaixonante, a verde e rosa desfilou alegre e vigorosa, embaralhando a disputa pelo título. O clímax de uma noite com mais pecados do que virtudes.
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Dava para ver, no rosto dos componentes, a inquebrável alegria de cantar. Uma sucessão de sorrisos escancarados, agradecidos, numa jornada de muito prazer na passarela. E, por música, tudo se encaixou. Graças ao samba, que pavimentou todos os caminhos. O casal de mestre-sala e porta-bandeira, o ótimo Matheus e a estreante Cinthia, ostentou perfeição; a bateria passou precisa com seu surdo sem resposta, emoldurando a monumental rainha Evelyn Bastos, que empolgou o público vestida de Oxum.
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Ganhou? Sem açodamento. A comissão de frente apenas regular e as alegorias bem realizadas, mas modestas na comparação com as milionárias da festa, são interrogações que espreitam o sonho mangueirense. Mas ninguém foi dormir mais feliz, ao fim da metade inicial, do que o povo de verde e rosa.
O descanso dos atuais campeões não será tão sereno. A Grande Rio não repetiu o desempenho de 2022 e ficou mais distante do bi. Surgiu linda com seu enredo-busca por Zeca Pagodinho – obra, sobretudo, dos melhores carnavalescos da atualidade, Leonardo Bora e Gabriel Haddad, autores de alegorias e fantasias espetaculares entre elas uma deslumbrante águia, homenagem à centenária Portela do coração de Zeca.
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Mas faltou leveza e sobrou atropelo. Problemas na iluminação de dois carros e um buraco no primeiro setor da Sapucaí comprometem o projeto de nova vitória. Pena, pelo samba divertido, conduzido com empolgação pelo cantor Evandro Malandro e a bateria do mestre Fafá, dois craques. A Grande Rio voltará sábado, mas dificilmente será no lugar principal.
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Não deve haver reprise – infelizmente – da antológica comissão de frente da Unidos da Tijuca, que lembrou o título de 2010, com uma abertura de almanaque, agora protagonizada pela atriz Juliana Alves. A deslumbrante ex-rainha de bateria voltou ao grêmio do Borel para encarnar Iemanjá, no desfile sobre a Baía de Todos os Santos, na coreografia de Sérgio Lobato, que arrancou aplausos da plateia.
O samba acelerado – por que insistem com isso? – foi um aborrecimento, sacrificando a ótima bateria do mestre Casagrande e a dupla de cantores (pai e filha) Wantuir e Wic Tavares. Jack Vasconcelos, o carnavalesco, apresentou trabalho correto, com alegorias de leitura clara, mas o último carro quebrou ao bater no viaduto ainda na concentração e desfilou com a torre adernada.
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A falta de um hino de qualidade abre o rosário de equívocos do Salgueiro, que aprendeu na pista como riqueza e estrutura não resolvem o babado. O luxo extremo – a começar pelo carro da comissão de frente, maior do que muita alegoria – se dissolveu num enredo de leitura impossível. Para piorar, o samba confirmou-se um problema, apesar do canto forte dos componentes.
Nota 10, no Salgueiro, só o mestre-sala e a porta-bandeira. Marcella Alves, linda num vestido com brilhos, dançou impecavelmente, coadjuvada pelo também excelente mestre-sala Sidclei. O casal faz parecer fácil a intrincada dança dos guardiões do pavilhão.
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O domingo teve ainda a dupla que tem de ser preocupar com a parte de baixo da tabela. O Império Serrano, de volta ao Grupo Especial, passou empoderado com alegorias e fantasias de qualidade do carnavalesco Alex de Souza sobre os caminhos de Arlindo Cruz, com destaque para a que trazia uma enorme porta-bandeira na frente. Vítima de um AVC cinco anos atrás, o homenageado desfilou com familiares e amigos no último carro, emocionando a Sapucaí. A turma da Serrinha acumulou méritos suficientes para ficar no grupo.
O risco maior terminou no colo da Mocidade Independente, que confirmou a rádio-corredor do pré-carnaval, em relação às dificuldades na construção da parte visual do desfile. O carro da comissão de frente e o abre-alas tinham graves problemas de acabamento e em outras alegorias havia componentes descalços. As fantasias, de leitura difícil, pareciam pobres, na comparação com as concorrentes. O samba não ajudou e a escola passou flácida.
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Entre erros e acertos, parece que, de novo, a campeã não sairá de domingo. A turma da primeira metade da maratona tem lições a aprender — porque o altar dos bambas também sabe ser cruel quando a receita desanda.