Morte de João Alberto no Carrefour completa 6 meses: Caso é exemplo de desumanização de negros no Brasil, diz especialista

Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: Luis Alvarenga/Getty Images
Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: Luis Alvarenga/Getty Images
  • Morte de João Alberto num supermercado de Porto Alegre completa seis meses sem julgamento previsto

  • Seis pessoas foram indiciadas pelo crime de homicídio triplamente qualificado; Defesa de suspeito diz que ex-PM não agiu "motivado por racismo"

  • Especialista vê mais um exemplo de "desumanização" dos negros no país

A morte de João Alberto, cidadão negro, dentro de um estacionamento de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre (RS), ainda é uma ferida aberta para muitos brasileiros. Nesta quarta-feira (19), o crime completa seis meses ainda sem previsão de julgamento. Giovani Gaspar da Silva, ex-PM temporário, responde, ao lado de outras cinco pessoas, pelo crime de homicídio triplamente qualificado com dolo eventual (motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima).

Para Flavio Thales Ribeiro Francisco, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), o episódio é mais um exemplo do uso do "dispositivo de desumanização" em territórios periféricos, onda reside uma maioria de pretos e pardos.

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"Essa quadro [do racismo no Brasil] é ainda mais complexo pela questão estrutural do punitivismo da sociedade brasileira que é reforçado pela raça, um dispositivo de desumanização", afirma o docente, especialista em direitos humanos e racismo, ao Yahoo! Notícias.

Francisco explica que os ditos "progressistas" pregam que os direitos humanos sejam universalizados e atinjam todos os setores da população. Em oposição, existem os "punitvistas" que apostam em uma narrativa que liga os direitos humanos a criminalidade, o que acabaria comprometendo o trabalho das forças policiais.

"Nos anos 90, isso era uma ideia presente em muitos discursos, mas hoje há um grupo no poder que está associado aos punitivistas. Temos major, cabo, coronel, pessoas que saíram da polícia e agora estão ocupando cargos políticos", pondera o docente.

Segundo o professor, não é necessário que um grupo vocalize uma vontade de "eliminar os negros", já que há uma insistência em discursos que os desumanizam, algo que, segundo ele, sempre se desdobra em "racialização".

"Existem discursos implícitos. Quando classificam alguém, por exemplo, como "vagabundo" é uma ideia associada à racialização. Ninguém trata um grupo de políticos envolvidos em corrupção na Zona Sul do Rio de Janeiro por esse termo", explica o docente.

No caso de João Alberto, morto por um segurança privado após uma discussão em um supermercado, Francisco vê uma replicação desse quadro em um contexto que envolve serviços particulares de vigilância.

"A morte do João Alberto também cabe no quadro de desumanização: existem agentes de segurança que não necessariamente são policiais, mas muitas empresas de segurança são gerenciadas por policiais e eles acabam reproduzindo a cultura de violência das instituições policiais".

Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: SILVIO AVILA/AFP via Getty Images
Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: SILVIO AVILA/AFP via Getty Images

A defesa do ex-PM temporário, preso pela morte de João Alberto, diz que Giovani Gaspar "não agiu motivado por racismo". No entanto, Francisco lembra que não há registros de casos de pessoas brancas "enquadradas" por forças de segurança privada.

"É como se esses grupos de segurança privada fossem uma espécie de apêndice das forças policiais. Isso acaba reproduzindo essas práticas violentas, a maneira como se "enquadra" essas figuras desumanizadas são as mesmas", opina o historiador.

Outro crime envolvendo um cidadão negro, desta vez uma criança, completou um ano sem sequer contar com investigações em curso. João Pedro, de apenas 14 anos, foi morto com uma bala de fuzil durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), enquanto brincava com amigos na casa dos tios. Os policiais investigados seguem na ativa.

Não há racismo no Brasil?

Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: AP Photo/Andre Penner
Morte de João Alberto no Carrefour gerou onda de protestos em diversos estados no Brasil - Foto: AP Photo/Andre Penner

Uma das declarações que mais chamaram atenção na ocasião da morte de João Alberto foi a do vice-presidente Hamilton Mourão, que negou a existência do racismo no país ao comentar o caso.

“Lamentável, né. Lamentável isso aí, isso é lamentável. A princípio, é segurança totalmente despreparada para atividade que ele tem que fazer. […] Para mim, no Brasil, não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui”, disse o vice-presidente a jornalistas, no Palácio do Planalto, à época.

Para o docente, a declaração tem intenção de passar uma ideia de que os preconceitos no país são apenas "circunstanciais", negando a existência de um problema sistemático e estrutural, na linha do que é defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

"Esse discurso de democracia racial era forte até os anos 90, mas já foi bastante questionado. Hoje são poucas pessoas que trabalham com essa ideia de que existe um "racismo soft" no Brasil. Ainda assim a fala do Mourão está alinhada ao discurso de Bolsonaro", pondera.

Francisco lembra também que Bolsonaro bancou, em diversas ocasiões, a permanência de Sérgio Camargo na Fundação Palmares, subvertendo a lógica de uma instituição que deveria combater o racismo no país. Algo que, segundo o docente, acontece também em outros pastas como o Ministério do Meio Ambiente, chefiado por Ricardo Salles, e no Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.

"Basicamente o que ele [Sérgio Camargo] tenta é desconstruir uma memória do movimento negro brasileiro e criar, por exemplo, uma ideia de 'neoisabelismo', conceito que coloca a Princesa Isabel como protagonista da abolição no país". Francisco destaca o esforço de membros do governo Bolsonaro no sentido de desassociar o problema racial das forças de segurança.

"Há uma tentativa de pregar a existência de uma harmonia entre as raças. É isso que Mourão enfatiza publicamente em algumas oportunidades. Existe também uma conexão do bolsonarismo com as milícias, o que significa um elo com corrupção policial", diz o professor que não vê alternativa para pautas progressistas enquanto Bolsonaro e seus apoiadores de extrema-direita estiverem no poder.

"A ideia, ao meu ver, é desmantelar tudo o que é possível no que diz respeito aos avanços na questão racial, dos LGBTs, feminismo, questão indígena, entre outros. Tudo isso é associado por eles a uma 'esquerda' e, portanto, seriam pautas contra o país", pontua o professor que diz não ver possibilidade de negociação entre os setores progressistas e o governo Bolsonaro.