A mulher que pode acabar com o direito ao aborto nos EUA

Lynn Fitch do lado de fora da Suprema Corte
A advogada Lynn Fitch pediu Ă  Suprema Corte que revogue a decisĂŁo do histĂłrico caso Roe vs. Wade, de 1973

Em setembro de 2021, a procuradora-geral do Estado norte-americano do Mississippi, Lynn Fitch, compareceu a uma entrevista para o programa catĂłlico de televisĂŁo Pro-Life Weekly, que apresenta ativistas contra o aborto.

Fitch manteve para a entrevista a mesma aparĂȘncia que exibia em quase todas as suas apariçÔes pĂșblicas: cabelos tingidos de loiro, alisados e bem cuidados, joias de bom gosto e terno de uma sĂł cor, desta vez de tom azul-claro.

A procuradora-geral estava ali para celebrar. A Suprema Corte dos Estados Unidos havia acabado de anunciar a data da audiĂȘncia sobre a contestação do seu Estado ao caso Roe vs. Wade — uma decisĂŁo histĂłrica de 1973 que, jĂĄ hĂĄ quase 50 anos, garante o acesso ao aborto em todo o paĂ­s.

A ação atual, Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization, baseia-se em uma lei do Mississippi que proibiria o aborto após 15 semanas de gravidez, mesmo em casos de estupro ou incesto. Sob a direção de Fitch, o Estado pediu à Suprema Corte que mantivesse a lei e revogasse a decisão do caso Roe vs. Wade.

A decisĂŁo deve ser anunciada ainda este mĂȘs, mas um vazamento indica que Ă© provĂĄvel que a lei de proibição do Mississippi seja mantida, estabelecendo o caminho para que outros Estados tambĂ©m proĂ­bam o aborto.

Fitch, que nĂŁo concedeu entrevista, havia argumentado que a reversĂŁo do caso Roe vs. Wade mudaria o jogo, "liberando" as mulheres do que ela descreveu como uma falsa escolha entre a famĂ­lia e a carreira.

"Cinquenta anos atrĂĄs, para as mulheres que trabalhavam, eles queriam que vocĂȘ fizesse uma escolha. Agora, vocĂȘ nĂŁo precisa", afirmou ela no programa Pro-Life Weekly. "VocĂȘ tem na vida a opção de realmente atingir seus sonhos, seus objetivos, e pode tambĂ©m ter belos filhos."

Segundo ativistas prĂł-escolha, se Fitch ganhar a causa e a decisĂŁo do caso Roe vs. Wade for revertida, cerca de 40 milhĂ”es de mulheres podem perder o acesso ao aborto. Isso poderĂĄ tambĂ©m fazer com que Fitch, que Ă© mĂŁe de trĂȘs filhos, solteira e trabalha, torne-se uma superstar republicana e garota-propaganda do seu prĂłprio argumento: de que as mulheres modernas nĂŁo precisam do aborto para terem tudo.

Um manifestante antiaborto tira uma placa do lado de fora da Jackson Womens Health Organization, também conhecida como The Pink House em Jackson, em 7 de junho de 2022
Lynn Fitch em frente Ă  Jackson Women's Health Organization - a Ășnica clĂ­nica de aborto remanescente no Mississipi

O aborto nĂŁo foi sempre um tema animador na carreira polĂ­tica de Lynn Fitch. Quando assumiu seu primeiro cargo pĂșblico — o de tesoureira do Estado do Mississippi, em 2011, ela apoiou uma lei que garantiria a igualdade de salĂĄrios entre homens e mulheres.

Suas convicçÔes foram moldadas de muitas formas pela sua criação e, especialmente, pela sua experiĂȘncia como mĂŁe solteira, segundo Hayes Dent, amigo e colega de longa data, que organizou sua primeira campanha polĂ­tica.

Quando Dent encontrou Fitch pela primeira vez, ela havia acabado de ser nomeada diretora-executiva do Quadro de Pessoal do Estado do Mississippi, uma agĂȘncia estadual, pelo entĂŁo governador Haley Barbour. Dent ficou imediatamente impressionado.

"Conheci quase todas as principais figuras polĂ­ticas do Mississipi nos Ășltimos 40 anos e podia dizer: ela vai concorrer a um cargo", afirma Dent. "E, quando ela concorrer, serĂĄ bem sucedida."

Ela só lançaria sua primeira campanha política dois anos depois. E, quando se candidatou a tesoureira estadual em 2011, "era um azarão", segundo Austin Barbour, estrategista nacional do Partido Republicano (ele não é parente do ex-governador Barbour, do Mississippi, que nomeou Fitch para o Quadro de Pessoal do Estado).

Dent, que vinha acompanhando Lynn Fitch, entrou em contato com ela em meio Ă  campanha de 2011 e pediu para colaborar. "Eu disse 'veja, acho que vocĂȘ pode vencer esta campanha'", relembra ele.

Fitch aceitou e os dois fizeram uma campanha ambiciosa, chegando a atravessar o Estado em um Ășnico dia, com diversas paradas e telefonando para arrecadar fundos entre uma parada e outra.

"Sua postura era 'qual Ă© a tarefa de hoje?", segundo Dent. "Seria algo como 'veja, precisamos ir ao festival de mascar fumo'. E ela se saĂ­a muito bem! Ela nĂŁo mascava fumo, mas se saĂ­a muito bem."

O Ășnico motivo que fazia Fitch faltar a um evento de campanha eram seus filhos. Ela saĂ­a mais cedo para assistir a um jogo de basquete na escola ou participar de uma reuniĂŁo de pais e professores.

Ela sabia fazer campanha naturalmente, mas os fundos não acompanhavam, o que levou Dent a pedir ao pai dela uma doação pessoal.

Ativistas antiaborto se reĂșnem do lado de fora da Suprema Corte dos EUA durante a 49ÂȘ March for Life em 21 de janeiro de 2022 em Washington DC
A procuradora-geral Fitch pode tornar-se heroĂ­na da direita

O pai da procuradora

Bill Fitch ainda morava em Holly Springs — uma pequena cidade rural perto da fronteira norte do Mississippi, onde Lynn Fitch passou a maior parte da infñncia.

Ele havia herdado terras na região histórica de Galena Plantation e usou a extensa årea de cerca de 3,2 mil hectares para restaurar a fazenda da família, transformando-a em um importante local de caça de perdizes. O ex-juiz da Suprema Corte Antonin Scalia e os ex-governadores do Mississippi Haley Barbour e Phil Bryant eram presenças frequentes no local.

Para hospedar os visitantes das Fazendas Fitch, Bill Fitch comprou e transportou para sua propriedade a antiga casa de Nathan Bedford Forrest — general do exĂ©rcito confederado na Guerra Civil americana (1861-1865) e primeiro lĂ­der da Ku Klux Klan.

Lynn Fitch contou à imprensa local sobre suas lembranças "especiais" de infùncia na fazenda do pai, andando a cavalo e caçando perdizes. E, quando era adolescente, foi o "protótipo da garota popular", segundo Dent. "Líder, esportiva, líder de torcida... o pacote completo."

Mais tarde, ela estudou na Universidade do Mississipi, entrou em uma irmandade e formou-se em administração de empresas — e, depois, em direito.

Quando Hayes Dent visitou a fazenda do pai de Fitch para pedir uma doação para a campanha, ele disse (ao pai) "que se saísse dali com um cheque de alto valor, ela ganharia". Ela ganhou — e ganhou de novo quatro anos depois, garantindo o segundo mandato como tesoureira do Estado.

Durante seu mandato, Fitch cuidou das dĂ­vidas do Estado, ampliou o acesso Ă  educação financeira e defendeu leis de pagamento igualitĂĄrio. Mas o Mississippi ainda Ă© o Ășnico Estado que nĂŁo garante salĂĄrios iguais para o mesmo trabalho entre homens e mulheres.

Fitch tambĂ©m desenvolveu seu dom de se conectar com eleitores, baseado na sua criação em Holly Springs e em uma aparente facilidade de lidar com o pĂșblico.

Durante entrevistas e em vĂ­deos para a campanha, Fitch parece inabalĂĄvel. Ela mantĂ©m facilmente o contato visual, sua fala Ă© lenta e tranquila e ela agradece com frequĂȘncia a Deus e Ă  sua famĂ­lia pela oportunidade de servir ao seu Estado.

"As raĂ­zes rurais sĂŁo importantes para os eleitores deste Estado", segundo Austin Barbour, o estrategista. "E ela Ă© simplesmente muito agradĂĄvel."

Fitch tambĂ©m reforçou suas credenciais conservadoras com seu apoio ao entĂŁo candidato Ă  presidĂȘncia Donald Trump, como lĂ­der da coalizĂŁo Mulheres por Trump do Mississippi, em 2016. Quando Trump esteve na cidade de Jackson para um comĂ­cio de campanha, ela se sentou na primeira fila.

Dois anos depois, Fitch anunciou que se candidataria a procuradora-geral do Mississippi — um cargo que nunca havia sido ocupado por uma mulher. Mas ela já não era um azarão e venceu a eleição em novembro de 2019, com cerca de 60% dos votos. Sua promessa era de manter "os valores e princípios conservadores".

Lynn Fitch, de branco Ă  direita de Donald Trump, em 2016
Lynn Fitch, de branco à direita de Trump, liderou a coalizão Mulheres por Trump do Mississippi na eleição presidencial de 2016

O aborto e o caso Roe vs. Wade

Como republicana dedicada em um Estado solidamente republicano, a posição de Fitch sobre o aborto era tida como certa, mesmo se ela não a defendesse abertamente.

Nos Estados Unidos, cerca de 60% das pessoas defendem que o aborto deveria ser legal em todos ou na maior parte dos casos, segundo dados do think tank (centro de pesquisa e debates) norte-americano Pew Research Center. Mas, entre os republicanos do Mississippi, cerca de 70% acreditam que o aborto deveria ser proibido em todos ou na maioria dos casos.

"VocĂȘ nĂŁo concorre no Mississippi, vocĂȘ nĂŁo concorre nos Estados rurais conservadores se nĂŁo quiser ver [o caso] Roe vs. Wade revertido", afirma Austin Barbour. "Isso estĂĄ simplesmente arraigado."

A proibição do aborto ante a Suprema Corte foi aprovada pelo legislativo estadual do Mississippi em 2018, dois anos antes da posse de Lynn Fitch com procuradora-geral. A lei, que proĂ­be totalmente o aborto apĂłs 15 semanas de gestação, foi imediatamente contestada judicialmente em nome da Jackson Women's Health Organization, a Ășltima clĂ­nica de aborto remanescente no Mississippi.

Um tribunal federal do distrito derrubou a lei alegando inconstitucionalidade e um tribunal superior ratificou a decisĂŁo em 2019.

Mas, em junho de 2020, com cinco meses no cargo, a procuradora-geral Fitch ingressou com uma petição junto à Suprema Corte dos Estados Unidos para rever a proibição após 15 semanas.

A corte, que tem maioria conservadora (6 a 3), aceitou e ouviu o caso em dezembro de 2021. Com isso, Fitch Ă© agora conhecida nacionalmente como a advogada que espera derrubar o caso Roe vs. Wade.

Lynn Fitch Ă s vezes afirma que seu Estado estĂĄ apenas defendendo o estado de direito, ao pedir Ă  Suprema Corte que delegue aos Estados o poder de legislar sobre o aborto. Mas ela afirma com mais frequĂȘncia que Ă© uma questĂŁo de empoderamento das mulheres.

Ela afirmou que a decisão do caso Roe vs. Wade fez com que as mulheres acreditassem que precisavam escolher entre a família e a carreira, e não ter ambos. "A justiça colocou as mulheres contra as nossas crianças e as mulheres contra outras mulheres", escreveu ela em um artigo de opinião no jornal The Washington Post.

Fitch argumenta que essa escolha Ă© enganosa e paternalista. É uma posição aparentemente retirada da sua prĂłpria vida: mĂŁe solteira que ascendeu aos mais altos nĂ­veis pĂșblicos do seu Estado, permanecendo dedicada aos seus filhos e netos.

"Ser mĂŁe solteira tem meio que dominado seu processo de pensamento e sua experiĂȘncia de vida", afirma Dent. "Acho que Ă© uma das razĂ”es das suas opiniĂ”es tĂŁo fortes sobre isso."

Durante uma entrevista para a televisĂŁo em 2021, Fitch afirmou que, em um mundo sem o caso Roe vs. Wade, "bebĂȘs seriam salvos" e as mĂŁes "teriam uma chance de realmente redirecionar as suas vidas. Elas tĂȘm todas essas oportunidades novas e diferentes que nĂŁo tinham 50 anos atrĂĄs."

Os ativistas contra a proibição do aborto acusaram Fitch de usar linguagem feminista para ocultar uma política inerentemente antifeminista.

Seus argumentos baseiam-se "em grande parte, em afirmaçÔes falsas de que estĂŁo 'empoderando as mulheres'", segundo Dina Montemarano, diretora de pesquisa da organização NARAL Pro-Choice America. Ela afirma que esta tĂĄtica Ă© usada com frequĂȘncia por ativistas antiaborto para impor o controle sobre o corpo das mulheres e violar suas liberdades fundamentais.

Em sua apresentação de abertura perante a Suprema Corte, Fitch mencionou "avanços políticos abrangentes [que] agora promovem a busca completa das mulheres pela carreira e pela família". Mas, em um argumento contrårio apresentado à Suprema Corte, 154 economistas advertiram que esse otimismo era "falso e prematuro".

Para eles, "a celebração das polĂ­ticas de licença-paternidade pelo Mississippi Ă© particularmente bizarra, jĂĄ que os Estados Unidos sĂŁo um dos dois Ășnicos paĂ­ses que nĂŁo possuem uma polĂ­tica nacional de licença-maternidade remunerada".

O Mississippi, especificamente, não tem leis estaduais que obriguem a licença-maternidade remunerada. Trata-se do Estado mais pobre do país e que possui as mais altas taxas de pobreza e mortalidade infantil.

Lynn Fitch dando entrevista do lado de fora da Suprema Corte
Fitch nĂŁo comenta a possibilidade de, um dia, candidatar-se ao governo do Estado do Mississippi

Mas, se o caso Roe vs. Wade for realmente derrubado, Fitch voltarĂĄ ao Mississippi como heroĂ­na conservadora.

"Tenho 99% de certeza de que ela concorrerĂĄ novamente Ă  procuradoria-geral", afirma Dent. "E, considerando os acontecimentos dos Ășltimos trĂȘs anos, Ă© difĂ­cil para mim imaginar que ela enfrente qualquer oposição dos republicanos desta vez."

Existem também rumores iniciais de que ela possa, um dia, concorrer para governadora. Fitch ainda não comentou sobre essas especulaçÔes. Mas, se vencer, ela serå a primeira mulher governadora na história do Mississippi.

'Este texto foi originalmente publicado https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61893349'

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