Não tem como falar da tragédia das chuvas sem falar sobre racismo ambiental
Não tem como compreender as tragédias socialmente construídas no país, essas que noticiamos como “desastres naturais”, sem que elas sejam analisadas pela ótica do racismo e da injustiça ambiental.
Foi o que me disse, no início de 2020, o geógrafo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcelo Lopes de Souza.
Ele tinha acabado de lançar o livro “Ambientes e territórios: uma introdução à ecologia política”.
Em nossa conversa, ele lamentou que no Brasil pouco se falava sobre racismo ambiental, diferentemente do que acontece nos EUA, onde militantes negros perceberam há anos a conexão entre o sofrimento imposto a um segmento da população e o campo da habitação, quase sempre mais exposta a lixo tóxico, incineradores, indústrias poluentes.
No Brasil, o racismo estrutural é escancarado a cada época chuvosa.
Os efeitos das enchentes, lembrou o especialista, é um problema antigo e conhecido. As inundações, os alagamentos e os escorregamentos têm, segundo ele, relação muito clara, forte e direta com o padrão de segregação nas cidades brasileiras.
“Populações mais pobres são forçadas a ocupar as terras marginais, que historicamente tinham pouco ou nenhum valor, em encostas, beira de rios e canais. São áreas da periferia, como favelas e loteamentos clandestino”, me disse ele.
Muitas dessas áreas são áreas de riscos geotécnicos. Podem desbarrancar a qualquer momento.
É um erro, segundo ele afirmou na ocasião, repetir que a população mora lá por “escolha”, já que o leque de oportunidades de moradia para ela é restrito.
“Elas são empurradas, historicamente, para essas áreas. De tempos em tempos, vemos exemplos de eventos cada vez mais extremos, de chuvas torrenciais, em regiões de clima tropical úmido. E o que acontece? As bocas de lobo estão entupidas, a limpeza de galerias não é feita. Isso acaba afetando de maneira desproporcional a população trabalhadora pobre que vive em assentamentos informais que sejam, ao mesmo tempo, áreas residenciais em situações de risco. Existe, claro, uma classe média e alta que também vive em encostas, por exemplo em alguns bairros do Rio, mas, historicamente, o Estado realiza obras caríssimas para garantir a segurança de algumas dúzias de mansões e condomínios de luxo. Quando lidamos com uma parcela majoritária da população, pobre e segregada, que não vai receber a mesma prioridade, percebe-se facilmente a razão de essa população se tornar a principal vítima, a principal atingida”, disse o professor em 2020.
Em São Sebastião e outras cidades do litoral norte, a chuva torrencial castigou a todos, mas os efeitos foram tão desiguais quanto o abismo social entre os moradores de condomínio e os das encostas.
Vendo as cenas e relendo a entrevista, a impressão é que o diagnóstico do professor ficou ainda mais atual.