Não tem como falar da tragédia das chuvas sem falar sobre racismo ambiental

Men carry a mattress on a street covered with mud in one of the landslide sites after severe rainfall at Barra do Sahy, in Sao Sebastiao, Brazil, February 21, 2023. REUTERS/Amanda Perobelli
Homens tentam salvar o que podem em suas residências na Barra do Sahy, em São Sebastião. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Não tem como compreender as tragédias socialmente construídas no país, essas que noticiamos como “desastres naturais”, sem que elas sejam analisadas pela ótica do racismo e da injustiça ambiental.

Foi o que me disse, no início de 2020, o geógrafo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcelo Lopes de Souza.

Ele tinha acabado de lançar o livro “Ambientes e territórios: uma introdução à ecologia política”.

Em nossa conversa, ele lamentou que no Brasil pouco se falava sobre racismo ambiental, diferentemente do que acontece nos EUA, onde militantes negros perceberam há anos a conexão entre o sofrimento imposto a um segmento da população e o campo da habitação, quase sempre mais exposta a lixo tóxico, incineradores, indústrias poluentes.

No Brasil, o racismo estrutural é escancarado a cada época chuvosa.

Os efeitos das enchentes, lembrou o especialista, é um problema antigo e conhecido. As inundações, os alagamentos e os escorregamentos têm, segundo ele, relação muito clara, forte e direta com o padrão de segregação nas cidades brasileiras.

“Populações mais pobres são forçadas a ocupar as terras marginais, que historicamente tinham pouco ou nenhum valor, em encostas, beira de rios e canais. São áreas da periferia, como favelas e loteamentos clandestino”, me disse ele.

Muitas dessas áreas são áreas de riscos geotécnicos. Podem desbarrancar a qualquer momento.

É um erro, segundo ele afirmou na ocasião, repetir que a população mora lá por “escolha”, já que o leque de oportunidades de moradia para ela é restrito.

“Elas são empurradas, historicamente, para essas áreas. De tempos em tempos, vemos exemplos de eventos cada vez mais extremos, de chuvas torrenciais, em regiões de clima tropical úmido. E o que acontece? As bocas de lobo estão entupidas, a limpeza de galerias não é feita. Isso acaba afetando de maneira desproporcional a população trabalhadora pobre que vive em assentamentos informais que sejam, ao mesmo tempo, áreas residenciais em situações de risco. Existe, claro, uma classe média e alta que também vive em encostas, por exemplo em alguns bairros do Rio, mas, historicamente, o Estado realiza obras caríssimas para garantir a segurança de algumas dúzias de mansões e condomínios de luxo. Quando lidamos com uma parcela majoritária da população, pobre e segregada, que não vai receber a mesma prioridade, percebe-se facilmente a razão de essa população se tornar a principal vítima, a principal atingida”, disse o professor em 2020.

Em São Sebastião e outras cidades do litoral norte, a chuva torrencial castigou a todos, mas os efeitos foram tão desiguais quanto o abismo social entre os moradores de condomínio e os das encostas.

Vendo as cenas e relendo a entrevista, a impressão é que o diagnóstico do professor ficou ainda mais atual.