'O festival do amor': Dilemas amorosos e existenciais atemporais com o encantamento de Woody Allen
Na primeira cena de âO festival do amorâ, o escritor e professor de cinema Mort Rifkin (Wallace Shawn) diz ao seu analista que festivais perderam seu encanto, jĂĄ que os filmes nĂŁo sĂŁo mais como as obras-primas dos grandes mestres europeus que ele costumava abordar em sala de aula. SĂł aceitou ir Ă San SebastiĂĄn porque sua mulher Sue (Gina Gershon) era a assessora de imprensa de um jovem cineasta francĂȘs (Louis Garrel) incensado por filmes polĂticos, cujo prĂłximo projeto tinha a pretensĂŁo de oferecer uma solução para o conflito no Oriente MĂ©dio.
O incĂŽmodo com uma ânova ordemâ no cinema mundial, em que o ativismo passa a ser mais importante que a arte, nĂŁo Ă© a Ășnica preocupação demonstrada por Rifkin na sessĂŁo de terapia de 90 minutos em que consiste o novo filme de Woody Allen. Ele tambĂ©m tem ciĂșme da mulher com o galĂŁ francĂȘs, Ă© hipocondrĂaco e sofre com um bloqueio criativo em relação ao seu novo livro. Ou seja, um daqueles personagens caracterĂsticos que Woody Allen sempre colocou em cena como uma espĂ©cie de alter ego ficcional que criou para si.
Por isso o espectador consegue imaginar como o filme ficaria mais engraçado se cada comentĂĄrio mordaz ou cada gesto hesitante de Rifkin estivesse sendo interpretado por Woody Allen, que nĂŁo atua desde a sĂ©rie âCrise em seis cenasâ, de 2016. Shawn (que esteve em âManhattanâ e outros filmes do diretor), embora oito anos mais novo, parece cansado, nĂŁo tem o mesmo timing de Allen para os diĂĄlogos cĂŽmicos.
Se por conta disso rimos menos, por outro lado âFestival do amorâ tem um encantamento que esteve ausente do filme anterior do diretor, âUm dia de chuva em Nova Yorkâ. E isso se deve sobretudo ao fato de nele Woody Allen tornar ainda mais explĂcita sua paixĂŁo pelo cinema. Os cineastas europeus, sobretudo Bergman e Fellini, foram uma influĂȘncia recorrente em sua obra, com citaçÔes frequentes. Desta vez ele reuniu todos de uma vez, juntando os dois com Godard, Truffaut, Chabrol, Buñuel e o âintrusoâ Welles em recriaçÔes de cenas marcantes de âOito e meioâ, âJules e Jimâ, âPersonaâ e âO Anjo Exterminadorâ, entre outras. O diretor de fotografia Vittorio Storaro propiciou enquadramentos e iluminação quase idĂȘnticos aos originais, enquanto o roteiro de Allen as inseriu organicamente na trama do filme de maneira extremamente criativa.
Trata-se claramente de um aceno ao seu pĂșblico fiel, formado por cinĂ©filos nostĂĄlgicos que vĂŁo envelhecendo com ele, enquanto as novas geraçÔes perdem o interesse por seus filmes, embora os dilemas amorosos e existenciais que Allen tĂŁo bem aborda desde âAnnie Hallâ, de 1977, sejam atemporais. Azar o delas.
Cotação: Boneco aplaude sentado