A odisseia dos camponeses dos Andes peruanos dispostos a dar a vida em Lima

"Dina, escuta, os Chancas estĂŁo a caminho!", gritam os camponeses desta etnia peruana, com fama de aguerridos em Humay, 200 km ao sul de Lima. Barrados pela polĂ­cia, eles querem ir atĂ© a capital, Lima, pedir a renĂșncia da presidente Dina Boluarte, a dissolução do Congresso e eleiçÔes imediatas.

Estas quase 200 pessoas bloqueadas em Humay, aos pés da Cordilheira dos Andes, conseguiram finalmente chegar a Lima na madrugada desta terça-feira (17), ao final de uma viagem de 40 horas em Înibus e caminhÔes. Agora, esperam as diretrizes para se manifestar na capital, disse um deles esta manhã.

Milhares de manifestantes, a maioria vindos do sul do paĂ­s, se reuniram nos Ășltimos dias em Lima para reforçar a mobilização iniciada em 7 de dezembro passado, apĂłs a destituição do presidente Pedro Castillo, de origem indĂ­gena, detido apĂłs um autogolpe frustrado, ao tentar dissolver o Congresso.

Os distĂșrbios que se seguiram deixaram desde entĂŁo 42 mortos. O governo declarou estado de emergĂȘncia em parte do territĂłrio para conter os confrontos.

A polícia recebeu instruçÔes para frear em Humay o avanço dos manifestantes até a capital.

Uma fileira de policiais da tropa de choque, equipados com capacetes e escudos, proĂ­be o trĂąnsito e outros protegem a delegacia local.

- "Assassina" -

Os quatro motoristas do grupo foram parados por "problemas no seguro do veículo e controle técnico" do mesmo, segundo o agente da polícia Alex Escalante Salazar, que nega qualquer obståculo à circulação e assegura, inclusive, fazer o possível para acelerar o "processo".

"A polĂ­cia nos impede de chegar a Lima. A golpista provavelmente lhes deu ordem para nos atacarem pelo caminho", diz JuliĂĄn Huaman, um camponĂȘs de 30 anos, exibindo um cartaz com a bandeira da regiĂŁo de ApurĂ­mac, que faz alusĂŁo Ă  presidente Boluarte.

"JĂĄ fomos bloqueados lĂĄ em cima (na montanha). Fomos todos revistados, nos fizeram abrir as bolsas, mas temos as mĂŁos limpas", explica um dos lĂ­deres da mobilização, AbdĂłn FĂ©lix Flores HuamĂĄn, um camponĂȘs de 30 anos formado em sociologia.

O grupo partiu na tarde de domingo de Andahuaylas, um dos epicentros das manifestaçÔes, onde em dezembro duas pessoas morreram. "Nas comunidades, cada um doou um ou dois soles (entre 25 e 50 centavos de dólar). Com esse dinheiro, chegamos a Lima", afirma.

As autoridades advertem que os manifestantes sĂŁo "manipulados" e "financiados pelo garimpo ilegal ou pelo narcotrĂĄfico".

Em Humay, os manifestantes gritam palavras de ordem hostis Ă  presidente: "traidora", "assassina".

Boluarte era a vice-presidente de Pedro Castillo (e do mesmo partido dele) e o sucedeu, respaldada pela Constituição. Ela também é de Apurímac.

Em um de seus discursos, convidou seus conterrĂąneos a irem a Lima dialogar com ela. Os moradores de Andahuaylas pretenderam seguir o conselho.

- "A pé, se necessårio" -

"Dina Boluarte disse que quer nos ver em Lima, então vai nos ver em Lima", afirma, desafiadora, Anastasia Lipe Quispe, de 63 anos. Ela usa trajes tradicionais: chapéu feminino andino, um xale indígena e uma longa saia cobrindo as pernas, protegidas por meias altas.

Ela garante que não vai se deixar intimidar pelas barreiras policiais nas rodovias. "Vamos a Lima seja como for. A pé, se necessårio. Temos nosso milho e nosso queijo" para a viagem, acrescenta, determinada.

A barreira policial finalmente foi suspensa apĂłs a meia-noite de segunda-feira.

A crise também é um reflexo do enorme abismo entre a capital e as províncias pobres, que apoiaram o presidente Castillo e viram em sua eleição uma forma de se vingarem do desprezo que dizem receber de Lima.

"Esta Ă© uma luta da nação Chanca. Uma luta dos quĂ©chuas, dos aimaras contra um Estado que tem 200 anos de RepĂșblica e que continua marginalizando. A luta Ă© contra o racismo", opina GermĂĄn Altamirano, um agricultor de 75 anos, que usa um chapĂ©u tradicional com estampas coloridas.

Na noite de segunda-feira, o cansaço era aparente nos rostos após 24 horas de viagem. As mulheres de Humay trazem um prato enorme cheio de macarrão. Uma fila se forma para comer.

"NĂłs nos unimos para apoiar nossos irmĂŁos na luta. Queremos que Dina Boluarte seja removida, que o Congresso seja fechado e uma assembleia Constituinte" seja estabelecida, explica Maria, sem revelar seu sobrenome.

As demandas tambĂ©m sĂŁo econĂŽmicas. As regiĂ”es andinas tĂȘm a impressĂŁo de serem desassistidas pela capital, mais rica. VĂĄrios manifestantes acusam as "multinacionais", especialmente as mineradoras, de "saquear" o paĂ­s sem fazer investimentos no setor.

"A vida Ă© dura no Peru. Agora estĂĄ muito caĂłtica. Um camponĂȘs ganha 930 soles (235 dĂłlares) e alguns tĂȘm atĂ© dois familiares" para cuidar, ressalta AbdĂłn FĂ©lix.

"Se um peruano nĂŁo Ă© capaz de dar a vida por seu paĂ­s, nĂŁo Ă© peruano. Vamos continuar lutando por nossos irmĂŁos que jĂĄ deram a vida. NĂłs tambĂ©m estamos dispostos" a fazĂȘ-lo, assegura FĂ©lix.

"É o ponto de partida para que isto mude", sentencia o homem.

pgf/pz/lab/ybl/llu-ltl/ljc/mvv/am