Os animais que fazem arte - e podem ter vantagens evolutivas com isso

Baiacu
Baiacu

Em 1879, o aristocrata e arqueĂłlogo amador espanhol Marcelino Sanz de Sautuloa partiu com a filha Maria para explorar uma caverna perto da casa da famĂ­lia em CantĂĄbria, na Espanha.

Enquanto De Sautuola vasculhava o solo à procura de artefatos pré-históricos, Maria penetrou nas profundezas na caverna.

De repente, ela se deparou com um teto coberto por dezenas de pinturas.

Os desenhos eram de auroques, uma espécie de boi havia muito tempo extinta. Eles foram pintados pelo povo magdaleniano entre 14.820 e 13.130 anos atrås.

Na Ă©poca, os acadĂȘmicos ficaram surpresos com o fato de humanos primitivos serem capazes de expressĂŁo artĂ­stica — mas as origens da arte remontam hĂĄ muito mais tempo do que isso.

Na verdade, a arte antecede a existĂȘncia do Homo sapiens.

Hå cerca de 51 mil anos, um neandertal esculpiu padrÔes em um osso de veado em uma caverna na Alemanha.

A escultura foi feita milhares e milhares de anos antes de o Homo sapiens chegar Ă  Europa.

Hå 500 mil anos, o Homo erectus, uma espécie ainda mais primitiva do ser humano, gravou linhas abstratas em ziguezague em uma concha em Java.

Essas descobertas desafiam a crença de que a arte é proveniente particularmente do Homo sapiens.

Mas talvez não seja tão surpreendente que outras espécies de humanos tivessem impulsos criativos.

Afinal, sabemos que outros hominídeos fabricavam e usavam ferramentas e até enterravam seus mortos.

No entanto, pode te surpreender saber que existem outros membros do reino animal que também apreciam a beleza e o talento artístico.

Em 2005, uma sĂ©rie de trĂȘs pinturas de um chimpanzĂ© chamado Congo foi vendida em leilĂŁo por 14.400 libras (cerca de R$ 92 mil na cotação atual).

Congo nasceu em 1954 no Zoológico de Londres e, enquanto esteve lå, chamou a atenção do zoólogo e artista britùnico Desmond Morris.

Morris deu ao chimpanzĂ© um lĂĄpis e um cartĂŁo — e ficou maravilhado quando ele começou a desenhar.

Ao longo de sua vida, Congo criou mais de 400 obras, algumas com lĂĄpis e outras com tinta.

Embora suas criaçÔes fossem abstratas — ele nunca pintou imagens identificĂĄveis, ​​como retratos ou paisagens —, ele abordava suas obras com um senso de intenção e, se suas pinturas ou pincĂ©is fossem retirados, ele reclamava em voz alta atĂ© que fossem devolvidos a ele.

Se sentisse que havia finalizado uma obra, se recusava a corrigir o que havia feito.

Além disso, ao longo dos anos, suas linhas rabiscadas e manchas de tinta evoluíram para composiçÔes mais cuidadosamente consideradas.

Dizem que Picasso supostamente possuĂ­a uma pintura de Congo e a pendurou em seu estĂșdio.

Pintura rupestre
As primeiras pinturas rupestres humanas encontradas em lugares como Altamira, na Espanha, mostraram que o desejo de criar arte antecede a civilização

Mas como podemos dizer que os desenhos feitos por Congo eram realmente arte?

Elefantes em cativeiro foram treinados para criar obras de arte, mas na natureza eles nĂŁo tĂȘm interesse em pintar flores ou natureza morta. SerĂĄ que os chimpanzĂ©s encontram significado ou propĂłsito ao colocar o lĂĄpis no papel?

Para entender se os animais são realmente capazes de apreciar ou produzir arte, precisamos saber o que é arte. Mas sua definição varia imensamente.

O dicionårio britùnico Oxford define a arte mais em termos de habilidade: "A aplicação da habilidade nas artes da imitação e desenho, pintura, gravura, escultura, arquitetura; e a produção håbil do belo em formas visíveis."

O dicionårio britùnico Collins, por outro lado, enfatiza o propósito por trås de sua criação: "Pinturas, esculturas e outras imagens ou objetos que são criados para as pessoas olharem e admirarem ou pensarem profundamente sobre."

Hå muitos animais que fazem estruturas elaboradas, mas quase toda esta produção serve a um propósito pråtico, em vez de estético.

As aranhas tecem teias intrincadas que parecem lindas ao olho humano, mas para as aranhas, elas servem de armadilhas para moscas.

Os arquitetos que buscam um design inovador ousado não precisam ir tão longe, basta olhar a simetria perfeita do favo de mel — mas as abelhas o usam para abrigar suas larvas e estoques de mel e pólen.

HĂĄ algumas criaturas, no entanto, que criam objetos de beleza sem nenhum propĂłsito aparentemente prĂĄtico.

Em 1995, mergulhadores na costa do Japão notaram uma série de padrÔes geométricos estranhos gravados no fundo do mar.

Estes "círculos nas plantaçÔes subaquåticos", como ficaram conhecidos, se estendiam por até 2m de comprimento e permaneceram um mistério por quase duas décadas.

Em 2011, os cientistas encontraram a criatura responsĂĄvel — uma nova espĂ©cie de baiacu Torquigener.

O baiacu macho cria meticulosamente os cĂ­rculos batendo as barbatanas enquanto nada ao longo do fundo do mar.

Ele junta entĂŁo areia fina para dar Ă  escultura uma aparĂȘncia e coloração mais vibrantes.

E, finalmente, decora as cristas e vales dentro dos cĂ­rculos com fragmentos de conchas.

Congo ao lado de pintura
As pinturas de Congo sugerem que alguns animais nĂŁo sĂł gostam de criar arte, como tĂȘm noção quando os projetos estĂŁo prontos

As esculturas levam atĂ© nove dias para serem construĂ­das e, depois de prontas, as fĂȘmeas chegam para inspecionĂĄ-las.

Se gostarem do que veem, pÔem ovos no centro do círculo para os machos fecundarem.

AtĂ© agora, nĂŁo foi encontrado nenhum propĂłsito funcional ou adaptativo para os cĂ­rculos, sugerindo que as fĂȘmeas poderiam simplesmente ser atraĂ­das pela beleza estĂ©tica das formas geomĂ©tricas.

Os baiacus, ao que parece, nĂŁo sĂŁo os Ășnicos animais a criar esculturas interessantes.

Em 1872, o explorador Odoardo Beccari se tornou o primeiro europeu a escalar as montanhas Vogelkop de Nova Guiné e conhecer membros da tribo Arfak.

Enquanto estava lå, ele observou uma série de casinhas lindamente decoradas na floresta que ele presumiu serem obra dos moradores.

Na frente de cada casinha, havia um pequeno jardim decorado com musgo e mais de uma centena de objetos coloridos, incluindo frutas, flores frescas, cogumelos e esqueletos de besouros.

Notavelmente, elas não foram construídas por humanos, mas sim por uma ave — o pássaro-jardineiro ou caramancheiro (Amblyornis inornata), para sermos mais precisos.

Desde então, mais de 20 espécies desta ave foram descobertas na Austrålia, Nova Guiné e ilhas próximas.

Em todas elas, os machos da espĂ©cie constroem estruturas lindamente decoradas, conhecidas como caramanchĂ”es, para atrair as fĂȘmeas.

Os caramanchÔes consistem em avenidas formadas por estruturas elevadas de palha e galhos entrelaçados com musgo.

As avenidas dão para grandes åreas planas ou påtios que são adornados com conchas, nozes, frutas frescas, flores e, às vezes, até mesmo asas de borboleta.

Os caramanchÔes localizados perto de vilarejos humanos podem ser adornados com itens como chaves de carro, tampas de garrafas, escovas de dentes, óculos e dentaduras.

Algumas espécies de påssaros-jardineiros chegam a pintar seus caramanchÔes usando frutas esmagadas, carvão e até sabão em pó roubado de habitats humanos próximos.

As fĂȘmeas inspecionam os caramanchĂ”es antes de escolher seu favorito, mas o que exatamente elas estĂŁo procurando?

"Um aspecto Ă© a forma e o tamanho da avenida, e tambĂ©m o nĂșmero de ornamentos e o contraste visual entre eles", diz John Endler, biĂłlogo evolutivo e professor emĂ©rito da Universidade Deakin, na AustrĂĄlia.

PĂĄssaro-jardineiro no caramanchĂŁo
Os påssaros-jardineiros com plumagem fosca tendem a construir coleçÔes mais impressionantes, sugerem estudos

Os padrĂ”es geomĂ©tricos regulares e as avenidas tambĂ©m podem criar uma ilusĂŁo de Ăłtica conhecida como perspectiva forçada, que poderia servir para atrair a atenção da fĂȘmea.

"O macho tambĂ©m realiza uma espĂ©cie de exibição visual, em que move objetos coloridos rapidamente pelo campo visual da fĂȘmea para que os vejam rapidamente e depois desapareçam", explica Endler.

"Todos estes tipos de efeitos visuais interessantes servem para atrair e prender a atenção da fĂȘmea."

Isto prova entĂŁo que estes pĂĄssaros tĂȘm um senso estĂ©tico?

Certamente Ă© verdade que cada pĂĄssaro-jardineiro tem seu prĂłprio gosto e preferĂȘncias quando se trata de materiais e cores.

Cada item Ă© colocado com bastante cuidado e precisĂŁo, e se algum objeto for movido, as aves o devolvem ao seu lugar original.

Os påssaros mais jovens também parecem aprender a construir os caramanchÔes mais atraentes, seja por tentativa e erro, ou observando påssaros mais experientes.

Os påssaros-jardineiros também gastam muito tempo e esforço construindo seus caramanchÔes e defendendo-os de machos rivais.

Apreciando a arte

Embora a lista de criaturas que produzem arte seja relativamente pequena, hĂĄ outros animais que, pode-se dizer, parecem apreciar a beleza.

Em 1995, uma equipe de psicĂłlogos liderada por Shigeru Watanabe, professor de psicologia da Universidade Keio, em TĂłquio, mostrou que os pombos poderiam ser ensinados a distinguir entre as obras de arte de Claude Monet e Pablo Picasso.

Pesquisas posteriores descobriram que os peixes koi eram capazes de diferenciar a mĂșsica do cantor de blues John Lee Hooker da de Johann Sebastian Bach.

Peixinhos dourados (Carassius auratus) também podem ser ensinado a distinguir entre Bach e Igor Stravinsky.

Mas isso simplesmente mostra que os animais podem ser treinados para diferenciar as obras de arte. NĂŁo prova que eles apreciam ou obtĂȘm prazer a partir delas.

Um estudo separado realizado por Watanabe pareceu sugerir, no entanto, que os pĂĄssaros podem sentir prazer com a arte.

Ele descobriu que, quando tĂȘm a opção de escolher, os pardais-de-Java preferem passar o tempo empoleirados perto de pinturas especĂ­ficas.

Cinco de sete pardais demonstraram preferĂȘncia por pinturas cubistas, em vez de obras de arte impressionistas, enquanto trĂȘs tambĂ©m pareciam preferir pinturas japonesas do que obras impressionistas.

"Como nĂŁo podemos perguntar aos animais se eles gostam ou encontram prazer na arte, na psicologia experimental procuramos uma propriedade chamada reforço", diz Watanabe. "Se um animal faz algo para ver arte ou ouvir mĂșsica, entĂŁo esta arte e esta mĂșsica devem ter propriedades de reforço."

PavĂŁo
A cauda do pavĂŁo pode parecer incĂŽmoda, mas desempenha um papel vital nos rituais de acasalamento

"Muitas espĂ©cies de aves, mamĂ­feros e atĂ© peixes sĂŁo capazes de discriminar entre diferentes pinturas ou obras de mĂșsica, mas poucas as consideram reforço".

Os macacos podem ser um destes grupos. Os humanos geralmente preferem padrÔes simétricos a aleatórios, e acontece que certas espécies de macacos também.

Em 1957, o biĂłlogo alemĂŁo Bernhard Rensch mostrou a macacos-prego pequenos quadrados de papelĂŁo que apresentavam padrĂ”es simĂ©tricos — como linhas paralelas e quadrados concĂȘntricos — ou "padrĂ”es irregulares de conteĂșdo preto e branco semelhante".

Ao longo de centenas de tentativas, o macaco-prego mostrou um viés significativo para escolher as cartas padronizadas.

Rensch acreditava que isso acontecia porque os macacos possuíam "certos sentimentos estéticos båsicos".

Outra espécie que parece apreciar a beleza e a estética é o pavão.

A cauda do pavĂŁo Ă© inĂștil para o voo. É tĂŁo grande que Ă© um fardo fĂ­sico carregĂĄ-la por aĂ­. TambĂ©m Ă© mais provĂĄvel que atraia a atenção dos predadores.

No entanto, para que um macho tenha alguma esperança de atrair uma parceira, ele deve investir na cara plumagem de cores vivas. Por quĂȘ? Porque as fĂȘmeas acham sexy.

A preferĂȘncia Ă© tĂŁo forte que Ă© uma grande força motriz da evolução do pavĂŁo, levando a penas mais extravagantes na cauda ao longo do tempo.

Mas isso ainda nĂŁo responde Ă  questĂŁo de por que as fĂȘmeas sĂŁo atraĂ­das por objetos de cores vivas ou desenhos geomĂ©tricos simĂ©tricos.

A que possĂ­vel benefĂ­cio evolutivo poderia servir?

Uma ideia Ă© que humanos, macacos e atĂ© pardais sĂŁo atraĂ­dos por alguns tipos de arte porque podem lembrĂĄ-los de seu habitat natural, ou porque a arte pode fornecer cobertura e assim fazĂȘ-los se sentirem mais seguros.

"Nossos pardais preferiram as pinturas impressionistas Ă s cubistas, entĂŁo podemos dizer que gostam de pinturas mais naturais, mas sĂŁo necessĂĄrias mais pesquisas para confirmar isso", diz Watanabe.

Outra teoria é que o esplendor do pavão, ou os caramanchÔes de cores ornamentadas, podem servir como indicadores de força, ou "bons genes" no macho.

Os påssaros-jardineiros machos passam uma enorme quantidade de tempo protegendo seus caramanchÔes de machos rivais, enquanto simultaneamente tentam roubar ornamentos e destruir os caramanchÔes de outras aves.

Um estudo mostrou que de 100 peças de vidro azul colocadas no caramanchão de um macho subordinado, 76 foram transferidas para o caramanchão de um macho mais dominante num dia.

Isso sugere que os påssaros-jardineiros mais fortes e mais aptos podem construir os melhores caramanchÔes.

Mas a histĂłria nĂŁo para por aĂ­.

"A outra hipĂłtese alternativa Ă© que as fĂȘmeas de algumas espĂ©cies tĂȘm uma preferĂȘncia inata por alto contraste visual e cores brilhantes, e assim os machos evoluĂ­ram para tirar vantagem disso, construindo caramanchĂ”es cada vez mais elaborados ou investindo em plumagem brilhante", diz Endler.

Esta Ă© uma ideia meio revolucionĂĄria, porque sugere que nĂŁo Ă© apenas um caso de sobrevivĂȘncia do mais apto.

E nos deixa com a seguinte questĂŁo: a apreciação da arte, beleza e estĂ©tica dos animais (e particularmente das fĂȘmeas) poderia ser, na verdade, uma força motriz da evolução?

Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-62119779

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