Os quilombolas que o Brasil insiste em ignorar
Aquilombar Ă© acolher. Muito mais que esconderijos, os quilombos eram abrigos. NĂŁo protegiam apenas quem fugia da escravidĂŁo, mas de qualquer forma de opressĂŁo. Um relatĂłrio de 2012, da Secretaria de PolĂticas de Promoção da Igualdade Racial, calculou que havia cerca de 214 mil famĂlias e 1,17 milhĂŁo de quilombolas no Brasil, estimativa reconhecidamente modesta, tendo em vista que a demografia quilombola sĂł serĂĄ conhecida a partir do resultado do Censo 2022. NĂłs, negros, somos a imensa maioria nos quilombos, 92,1%, segundo a mesma pesquisa â nĂŁo Ă© para menos, jĂĄ que sempre fomos os mais oprimidos. Mas hĂĄ quilombolas de todas as cores e credos. Aquilombar o Brasil, portanto, significa tornar o paĂs a casa de todos. Ă lutar por justiça e igualdade.
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Essa Ă© a principal razĂŁo de lançarmos o Quilombo nos Parlamentos, uma iniciativa da CoalizĂŁo Negra por Direitos, que reĂșne 250 movimentos sociais e associaçÔes â como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que representa cerca de 6 mil quilombos. Queremos formar no Congresso uma bancada que olhe para quem mais precisa, alĂ©m de garantir nossos direitos constitucionais, que vĂȘm sendo constantemente desrespeitados.
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Em agosto, o IBGE começa a fazer o primeiro censo quilombola oficial, quando finalmente saberemos quantos realmente somos. Segundo os dados preliminares do instituto, existem 5.972 quilombos no Brasil, presentes em 1.674 municĂpios de 24 estados. Mas sĂł 4% deles estĂŁo titulados. As negligĂȘncias de sucessivos governos tĂȘm acentuado as desigualdades no acesso aos direitos e propiciado o desmonte de muitas polĂticas pĂșblicas â caso do atual governo. Ser negro no Brasil Ă© como viver num filme de terror: 75% das pessoas assassinadas sĂŁo negras, assim como oito em cada dez mortas pela polĂcia. Segundo o âAtlas da ViolĂȘncia 2020â, assassinatos de negros aumentaram 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto os de nĂŁo negros diminuĂram 12,9% no mesmo perĂodo.
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No Congresso, sĂł 17,8% dos parlamentares sĂŁo negros. Somos a maioria da população brasileira (56%), porĂ©m chamada de minoria; quilombolas sĂŁo minoria mesmo, tratados como minoria das minorias. Segundo o presidente, somos pesados em arrobas, como animais, e nĂŁo servimos nem para procriar. No momento, o Quilombo nos Parlamentos reĂșne cerca de cem prĂ©-candidaturas Ă s casas legislativas federal, estaduais e ao Senado.
NĂłs, quilombolas, tambĂ©m somos vĂtimas de uma polĂtica de invisibilidade por parte da sociedade brasileira, intensificada no atual governo. Tirando os indĂgenas, sĂł hĂĄ imigrantes neste paĂs. Nossos ancestrais foram sequestrados e trazidos para cĂĄ, mas fizeram desta terra sua casa e a amam para alĂ©m das riquezas materiais que ajudaram a produzir. O que seria do Brasil sem sua herança negra?
Temos uma cultura prĂłpria e o direito constitucional de conservĂĄ-la, pelos artigos 215 e 216 da Constituição. Nossos modos de vida salvaguardam as vegetaçÔes nativas dos biomas brasileiros. Nossas tradiçÔes ajudam a preservar a natureza, a medicina e a agricultura tradicionais e a biodiversidade. Mas hĂĄ o desejo de minimizar nossa importĂąncia na construção deste paĂs; nĂŁo fomos/somos apenas corpo, força bruta, mas tambĂ©m inteligĂȘncia, criatividade e alma. Aquilombar Ă© preciso!
*Selma dos Santos Dealdina é secretåria administrativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)