Pastor americano que 'reservou' inferno para LGBTQIA+ tem apoio de colegas brasileiros

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Semana incrível na América do Sul. Glória a Deus!", escreveu nesta quinta (23) o pastor estadunidense David Eldridge sobre a foto de sua mala num aeroporto do país natal. "Mas agora estou de volta à terra da liberdade!", completou, com o acréscimo do emoji de mãozinhas espalmadas para o céu.

Eldridge virou na véspera alvo de inquérito policial aberto pela Decrin, delegacia especializada em crimes discriminatórios, sob a asa da Polícia Civil do Distrito Federal. Motivo: no domingo (19), ele fez um discurso considerado de ódio contra a população LGBTQIA+, revestido de pregação cristã, num congresso da Umadeb (União das Mocidades das Assembleias de Deus de Brasília).

A Folha de S.Paulo tentou falar com o pastor por redes sociais e email, sem resposta em nenhum canal. Também procurou a Umadeb, mais uma vez sem retorno.

Com auxĂ­lio de um tradutor, Eldridge pregou em inglĂȘs que aqueles que ele vĂȘ como desviados nĂŁo sĂŁo merecedores do cĂ©u. Inclui nesse pacote atĂ© quem usa calça apertada, o que na sua opiniĂŁo incorpora o espĂ­rito da homossexualidade.

"Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lĂ©sbica tem uma reserva no inferno, todo transgĂȘnero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno, toda drag queen tem uma reserva no inferno", disse o pastor Ă  plateia de jovens evangĂ©licos. "VocĂȘ, rapaz, que estĂĄ usando calça apertada, que Ă© um espĂ­rito de homossexual, vocĂȘ vai pro inferno. VocĂȘ, moça, que quando sai da sua casa a sua saia Ă© tĂŁo curta e tĂŁo apertada, vocĂȘ sabe o que estĂĄ fazendo? VocĂȘ tem uma reserva no inferno."

A fala do pastor americano lhe garantiu uma possĂ­vel reserva na Justiça brasileira. O MinistĂ©rio PĂșblico do Distrito Federal diz, por meio de seu NĂșcleo de Enfrentamento Ă  Discriminação, que aguarda a conclusĂŁo do inquĂ©rito policial "para anĂĄlise e eventual denĂșncia". Reforça ainda que "considera as falas homotransfĂłbicas do pastor norte-americano muito graves".

NĂŁo poderiam dizer o mesmo lĂ­deres evangĂ©licos de grande projeção. Muitos deles atĂ© concordam que a forma de Eldridge se posicionar foi acima do tom, mas subscrevem o conteĂșdo homofĂłbico.

"A palavra de Deus é clara sobre o pecado e também sobre o pecador", diz o apóstolo César Augusto, à frente da igreja Fonte da Vida. "Deus ama o ser humano, aquele que peca, e abomina o pecado. Adultério, prostituição, homossexualismo [sic], tudo é pråtica pecaminosa. Todos que praticam o pecado... Não é a vontade de Deus levå-los para o inferno, mas eles fizeram opção de andar pelo caminho pecaminoso. Consequentemente, irão para o inferno se não se arrependerem."

Vai alĂ©m Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus VitĂłria em Cristo, que 13 anos atrĂĄs espalhou outdoors pelo Rio de Janeiro com a mensagem "Em favor da famĂ­lia e preservação da espĂ©cie humana. Deus fez macho e fĂȘmea".

Ele evoca o artigo 5Âș da Constituição, que assegura a liberdade de consciĂȘncia e de crença. "NinguĂ©m pode violar minha liberdade em crer em quem vai para o cĂ©u e quem vai para o inferno. É inviolĂĄvel o lugar do culto. Estou lendo na Constituição: ninguĂ©m serĂĄ privado de direitos por motivos de crença religiosa e de convicção filosĂłfica ou polĂ­tica."

Se Eldridge pregou num ambiente de culto, "que banzé é esse?", questiona Malafaia, "No Carnaval debocham da nossa fé, fazem pilhéria com Jesus no Porta dos Fundos, e não tem problema, não é discurso de ódio. Mas, quando a gente prega a Bíblia em que nós cremos, é discurso de ódio. Manda essa cambada plantar batata, ok?"

É um ponto de vista que tem ecoado entre lĂ­deres evangĂ©licos: Eldridge poderia, sim, ter pegado mais leve, mas tinha direito de dizer o que disse, atĂ© porque a prĂłpria BĂ­blia dĂĄ respaldo a tanto.

De fato, estå lå no Levítico, livro do Antigo Testamento: "Não te deitarås com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação".

Mas indagam os que acham indevido o uso das Escrituras para justificar a LGBTQIA+fobia: é para se levar tudo ao pé da letra? Porque Levítico também afirma que Deus abomina quem veste roupa com dois tipos de tecido, por exemplo. Vai mandar para o inferno a irmã que misturou seda e algodão no vestido do culto?

O pastor Pedrão, líder da Comunidade Batista do Rio e responsåvel por celebrar o casamento do deputado Eduardo Bolsonaro (PL), foi um dos que viram excesso na colocação do colega americano. "O pastor foi infeliz ao determinar que existe lugar [ para LGBTQIA+] no inferno."

"O assunto Ă© por demais polĂȘmico, mas como o prĂłprio Cristo disse: nĂŁo julgueis para nĂŁo ser julgado. NinguĂ©m tem as chaves dos cĂ©us. NĂŁo nos cabe lotear o inferno ou o cĂ©u dizendo quem vai e quem nĂŁo vai, nĂŁo somos Deus."

Eldridge não é um pastor expressivo em sua terra de origem, mas encontrou no hemisfério sul um amplificador para sua palavra. Entusiasta de Donald Trump nos EUA, segue à risca a cartilha do conservadorismo que, no Brasil, ficou sob guarida do bolsonarismo.

A Umadeb, congresso anual realizado durante o Carnaval, jå deu palco para o americano em anos anteriores. A participação deste ano, contudo, estourou a bolha e extravasou para fora da redoma evangélica.

A entidade assembleiana não se manifestou sobre as acusaçÔes de homofobia contra um dos principais pregadores de seu evento. O vídeo com a pregação de Eldridge sumiu de seu canal do YouTube.

Nas redes da Umadeb permanece em destaque uma frase do pastor: "Assim como existe o cĂ©u, existe o inferno. Talvez vocĂȘ nĂŁo acredite no inferno, mas o inferno acredita em vocĂȘ".