Por que Bolsonaro insiste em dizer que nazismo é de esquerda?
Está no site do centro de memória do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém: após o Tratado de Versalhes, acordo que selou a paz na Europa ao fim da Primeira Guerra, a Alemanha, diante da “crescente ameaça do Comunismo, criou solo fértil para o crescimento de grupos radicais de direita, gerando entidades como o Partido Nazista”.
Jair Bolsonaro esteve no memorial na última terça-feira. Ao fim da visita, ele fez coro à declaração de seu chanceler, Ernesto Araújo, segundo quem o nazismo foi um movimento de esquerda.
“Não há dúvida. Partido socialista, como é que é? Partido Nacional Socialista da Alemanha”, disse o presidente.
Há inúmeros estudos mostrando que, apesar do “socialista” da sigla, é um erro chamar o partido de Adolf Hitler de “esquerdista”. Muitos anos atrás, Herbert Marcuse já explicava que o regime nazista não alterou o processo de produção, como defendiam os ideólogos do socialismo soviético; pelo contrário, a matriz alemã continuou nas mãos dos grupos que controlavam os meios de produção.
Os comunistas, aliás, eram inimigos declarados do regime hitlerista, que em março de 1933 cassou mandatos de deputados, prendeu e perseguiu dirigentes e mandou para a ilegalidade o Partido Comunista da Alemanha.
Dez anos antes, o próprio Hitler explicou ao jornal “The Guardian” sua noção peculiar de “socialismo”: “O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo. O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada. Ao contrário do marxismo, não envolve a negação da personalidade; em vez de marxista, ele é patriótico. Nós poderíamos nos chamar Partido Liberal”.
Ninguém em sã consciência histórica pode negar os horrores perpetrados por regimes de direita e de esquerda no século 20.
Para muitos, que até outro dia diziam não haver direita nem esquerda após a Queda do Muro de Berlim, reconhecer e refutar os horrores é o que realmente importa, e não discutir, a essa altura do campeonato, qual ideologia inspirou seus regimes no passado.
A fala de Bolsonaro seria, assim, “apenas” um sintoma de quem não entendeu direito a lição.
Há algo mais grave que isso, porém.
A insistência no erro é a insistência em se apropriar do passado para justificar a narrativa política do presente, mesmo que ela preceda de uma realidade paralela alimentada pelas redes.
Nessa narrativa, tudo que de ruim aconteceu no mundo tem uma bandeira: a bandeira dos adversários.
Às vésperas de ser eleito, o próprio Bolsonaro prometeu “varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil”.
A identificação do inimigo como fonte de todos os males é um ponto em comum, aliás, a todo regime autoritário; feita a identificação, é possível fazer o que quiser com eles, inclusive varrer (no caso de Hitler, os judeus eram associados a “ratos” em peças oficiais).
No Brasil de 2019, o combate cego à ideologia “inimiga” não é loucura ou mera visão distorcida da realidade; é uma forma eficaz de unificar afetos, temores e discursos de ódio e se safar de qualquer identificação com o mal que se quer combater (corrupção, degradação moral, etc).
É como se de um lado houvesse os puros e, de outros, os degenerados – e estes só pudessem ser “a esquerda”.
O governo que prometeu agir pela razão, e não pela ideologia, se mostra, assim, atolado em uma ideologia própria que amalgama um discurso supostamente liberal na economia, conservador nos costumes e radical no discurso contra tudo o que representa o “mal maior”, a causa que agora justifica a repressão durante a ditadura militar no Brasil.
Se você ainda quer saber como nazistas e fascistas dialogavam com o comunismo no século passado, imagine o que aconteceria com um militante que cruzasse as fileiras do Reich com uma camiseta escrita “Lênin tem razão”. Não dá, né?
O Museu do Holocausto tem em sua fundação a ideia de que é preciso conhecer a História para evitar que ela repita suas páginas mais perversas.
Insistir no erro é uma aposta perigosa na escuridão. Nela cabem todos os horrores.