Prefeitura do Rio recebeu mais de 300 chamados para casas de acumuladores ao longo de 2022
O apartamento no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, tem apenas 25 metros quadrados. Mesmo assim, Roberta, dona do imĂłvel â ela prefere nĂŁo ter o sobrenome revelado â, guardou dentro de casa, ao longo de nove anos, roupas, brinquedos dos dois filhos, pedaços de isopor que encontrou pelas ruas e muitos outros objetos. O acĂșmulo sem controle começou no quarto e, quando jĂĄ nĂŁo era mais possĂvel entrar no cĂŽmodo, logo se espalhou pelo restante da casa.
â Parecia uma selva, vocĂȘ nĂŁo tinha onde pisar â conta Roberta.
Depois de um certo tempo, ela passou a deixar as prĂłprias roupas e as das crianças em caixas de papelĂŁo na sala de estar, porque nĂŁo conseguia mais encontrar as peças no quarto. O caso de Roberta ilustra o drama dos acumuladores compulsivos, vĂtimas de um problema mais comum na cidade do Rio do que pode parecer. A aflição domĂ©stica, em vĂĄrios momentos, acaba evoluindo para uma questĂŁo ambiental e de saĂșde pĂșblica. Entre janeiro e o inĂcio de dezembro do ano passado, segundo dados da Secretaria Municipal de Governo e Integridade PĂșblica (Segovi), o serviço 1746 da prefeitura registrou 308 chamados sobre acumuladores em residĂȘncias. Ă o equivalente a quase uma demanda por dia, em mĂ©dia.
Impulso sem controle
Desses chamados, 290 foram finalizados. O nĂșmero de denĂșncias nĂŁo corresponde exatamente ao nĂșmero de ocorrĂȘncias, jĂĄ que a mesma situação, num mesmo imĂłvel, pode originar mais de um pedido de atendimento. A maior parte dos episĂłdios estĂĄ localizada na Zona Oeste da cidade: Realengo registrou oito chamados, Bangu e Senador CamarĂĄ, trĂȘs cada um, e Campo Grande, dois.
â Eu tentei arrumar diversas vezes. Mas começava, colocava algumas coisas em um saco de lixo e desistia. Depois, quando eu nĂŁo conseguia achar alguma coisa, abria o saco de novo, procurava lĂĄ, e a bagunça voltava para o mesmo lugar. VocĂȘ nĂŁo consegue sair desse ciclo. Começa a ficar oprimida por aquela bagunça e ter vergonha da prĂłpria casa, e com isso para de ter relaçÔes sociais. Ă uma sensação horrĂvel â desabafa Roberta, que trabalha como vendedora de lanches.
O transtorno de acumulação é uma condição que se caracteriza pela dificuldade de descartar ou se desfazer de pertences, não importa o seu valor. TelevisÔes que não funcionam, liquidificadores queimados, brinquedos quebrados, roupas que não cabem mais, panelas: qualquer objeto tem uma desculpa para ser guardado.
A psiquiatra Vera Garcia da Silva, que trata acumuladores compulsivos, explica que pessoas com essa condição juntam excessivamente bens e objetos de forma desorganizada e mostram incapacidade ou angĂșstia em descartĂĄ-los, por acreditarem que um dia vĂŁo precisar daqueles objetos. AlĂ©m disso, costumam desvirtuar um espaço da casa para ocupĂĄ-lo com os itens guardados, o que torna os ambientes domĂ©sticos âintransitĂĄveis e insalubresâ.
â Apesar de ter vergonha e constrangimento, o acumulador nĂŁo consegue controlar o impulso de guardar objetos, o que impacta gravemente a sua vida pessoal e profissional e sua saĂșde â explica a psiquiatra.
Vera diz que mais de 80% dos acumuladores tĂȘm histĂłrico familiar de pessoas com transtornos semelhantes. AlĂ©m da influĂȘncia genĂ©tica, hĂĄ questĂ”es emocionais negativas, como privaçÔes e perdas desde a infĂąncia:
â Eu atendo pessoas que nunca experimentaram a sensação de bem-estar que a limpeza traz.
Roberta passou a acumular coisas em casa depois que se separou do marido, nove anos atrĂĄs. Ela acredita que seu caso Ă© atĂpico e que nĂŁo foi a tristeza que a levou Ă acumulação, e sim o alĂvio e a possibilidade de ser livre pela primeira vez:
â Meu ex-marido era muito controlador. Quando chegava em casa, olhava tudo. Eu limpava o chĂŁo seis vezes antes que ele chegasse. Se um objeto estivesse fora do lugar, ele reclamava. Depois da separação, eu tive o direito de fazer o que quisesse, e acabei perdendo as rĂ©deas das coisas. Eu me perdi na minha liberdade.
âFaxina do bem-estarâ
Marilyn Gonçalves, de 32 anos, Ă© moradora do Complexo do AlemĂŁo e trabalha com o que chama de âfaxina do bem-estarâ. HĂĄ trĂȘs anos, ela limpa casas de pessoas com transtorno de acumulação. Marilyn deixa claro que Ă© um serviço pesado: exige muita disposição fĂsica e emocional.
â Entrar na casa dessas pessoas Ă© sempre uma surpresa, eu nunca sei o que vou encontrar. Recentemente, atendi uma senhora que acumulava caixas de produtos vazias. Eram pilhas e pilhas de embalagens. Ao fazer a faxina, precisei comer fora da casa porque era impossĂvel ficar no lado de dentro. Quando comecei a mexer nos mĂłveis, as baratas subiam pela minha perna e entravam no meu cabelo â conta a diarista. â Muitas dessas pessoas cresceram em famĂlias acumuladoras, sem muita noção de higiene e limpeza. Pessoas que nĂŁo sabem como Ă© dormir na cama limpa, com a casa arrumada. EntĂŁo Ă© preciso ter muita empatia.
O deputado Danniel Librelon (Republicanos) Ă© autor de projeto de lei que propĂ”e instituir uma PolĂtica Estadual de Atenção Integral Ă s Pessoas em Situação de Acumulação. Um dos primeiros passos seria promover a busca ativa de cidadĂŁos nesta condição, com o objetivo de inseri-los na rede de atenção Ă saĂșde.
â O objetivo principal Ă© proporcionar um tratamento mais humanizado, com garantia de atenção integral Ă saĂșde, buscando o bem estar fĂsico, mental e social, alĂ©m de fortalecer a articulação entre os ĂłrgĂŁos envolvidos tanto nas açÔes de vigilĂąncia quanto na assistĂȘncia Ă saĂșde â explica o deputado.
Dez caminhÔes de sujeira
Quando a central do 1746 recebe uma demanda, encaminha para a Secretaria Municipal de SaĂșde, que realiza um atendimento domiciliar. Caso seja observado algum problema de saĂșde mental, a equipe pode encaminhar o paciente para um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) ou uma ClĂnica da FamĂlia, dependendo da situação.
A equipe tambĂ©m pode acionar a vigilĂąncia ambiental se encontrar criadouros de mosquito ou depĂłsito de ĂĄgua, ou mesmo a Comlurb, diante da necessidade de limpeza ao redor da casa: a companhia sĂł pode entrar na residĂȘncia para retirar objetos e lixo se o morador estiver de acordo ou sob autorização judicial.
Em junho, a Subprefeitura da Zona Sul coordenou uma ação para esvaziar a casa de uma acumuladora no bairro do Jardim BotĂąnico, apĂłs denĂșncias de vizinhos. Com a autorização da responsĂĄvel pela residĂȘncia, as equipes entraram no local e fizeram a limpeza do imĂłvel de uma idosa que tinha perdido a mĂŁe hĂĄ cerca de um ano. Mais de dez garis integraram a equipe que atuou no local, e pelo menos dez caminhĂ”es foram necessĂĄrios para tirar toda a sujeira.
Nos casos em que a acumulação acontece dentro de um condomĂnio, Marcelo Borges, diretor de CondomĂnios e LocaçÔes da Associação Brasileira das Administradoras de ImĂłveis (Abadi), explica que a administração precisa interferir quando hĂĄ qualquer tipo de dano aos outros moradores:
â A acumulação em si nĂŁo Ă© crime, mas se a prĂĄtica gerar dano aos outros locatĂĄrios, a administração deve tomar providĂȘncias, notificar o acumulador e multĂĄ-lo se nĂŁo houver resposta. Se nada disso resolver, as vias judiciais sĂŁo recomendadas, com a comprovação da insalubridade e do transtorno causado.