Primeiro passo para ser antirracista: reconhecer que a abolição não acabou com o racismo

O mito da abolição: A Lei Áurea não chegou nem perto de fazer justiça para os negros (as) escravizados (as) por quase 400 anos (Imagem:  Isabela Alves/ @egunzinha)
(Imagem: Isabela Alves/ @egunzinha)
  • A Lei Áurea não chegou nem perto de fazer justiça para os negros (as) escravizados (as) por quase 400 anos. A Alma Preta Jornalismo, em parceria com o Yahoo Notícias, inicia hoje a série “O mito da abolição”, que toma como ponto de partida o 13 de maio para refletir sobre as práticas racistas que perduram na nossa sociedade e demonstram a importância de olhar para o hoje desmistificando mentiras contadas no passado

Texto: Juca Guimarães e Nataly Simões

Há quem idolatre a monarquia brasileira e a fantasia de que as lutas por igualdade e contra o racismo estão ultrapassadas há pelo menos 133 anos. Parte dessa falsa simetria se deve a história contada de forma errônea nas escolas e na mídia, de geração em geração.

A Lei Áurea, que deveria ter posto fim ao período da escravidão, assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, transformada em uma “heroína”, foi insuficiente para dar conta de todas as tensões raciais que engrossam as desigualdades sociais e econômicas do Brasil. Não passou de uma grande mentira, uma vez que a luta contra escravidão em terras brasileiras se deu graças à luta constante de homens e mulheres negros e negras escravizados e ao movimento abolicionista mundial.

A consagração da filha de Dom Pedro II como salvadora da nação é confundida com a alegria do povo negro que conquistou, a duras penas, a condição de humanidade jurídica, que até hoje é contestada pela branquitude. Segundo estudiosos da questão racial, a branquitude é o conjunto de privilégios subjetivos, objetivos e sociais que os brancos têm ao não se racializarem, ocupando o lugar da normalidade e padrão, ao mesmo tempo que racializam todos os outros grupos étnicos.

Essa posição de poder da branquitude é uma das bases do racismo estrutural, que atualiza e mantém, propositalmente, todas as relações sociais do Brasil, a exemplo do que era no período da escravidão.

Levou mais de um século e décadas de mobilização do movimento negro organizado para que a população negra, que soma mais de 56% da população do país, tivesse direito a uma política afirmativa, cujo objetivo é reparar os efeitos do período escravocrata sob os descendentes dos negros e negras.

A antropóloga Izabel Accioly, pesquisadora das relações raciais e branquitude, nos lembra que o racismo depende de mudanças estruturais e coletivas para ser combatido e reflexões e ações individuais. Não existe fórmula pronta para ser antirracista, mas o primeiro passo é reconhecer que a abolição não acabou com o racismo e a história dos negros e negras que ergueram esse país, com sangue e suor, não tem a Lei Áurea como protagonista.

É compreender que os brancos que vivem hoje não são responsáveis pelo sequestro dos nossos antepassados do continente africano, mas colhem os privilégios de não serem racializados. É identificar como esse sistema de desumanização no qual lutamos pelo fim desde muito antes de sermos deixados à própria sorte no dia seguinte àquele 13 de maio de 1888, ainda se perpetua e se reinventa, seja na atuação das forças policiais que invadem nossas casas para nos matar, nos estereótipos que nos animalizam ou na linguagem que nos objetifica de forma sútil todos os dias.

No dia 13 de maio de 1888 não foi combatido o racismo e nem foi criada a democracia racial. A luta por igualdade, dignidade e respeito começou bem antes e vai além. A questão primordial é a falta de reparação histórica da escravidão, que não é mencionada na Lei Áurea e que só foi tomar forma, no início dos anos 2000, com a aplicação da lei de cotas para negros e negras nas universidades e concursos públicos.

Se toda a história do Brasil desde o descobrimento até 2021 fosse condensada em um período de dez dias, a escravidão representaria o equivalente a sete dias e meio. Seria como imaginar que a cada dez dias de história do Brasil, os negros e seus descendentes ficaram sete dias e meio sem salário, sem liberdade e sem dignidade, totalmente privados da sua humanidade.