'Quando era criança, não tinha maturidade para entender que o alcoolismo é uma grave doença'
"'Uma menina morreu. Eu vi como tudo aconteceu. Ela trançava os cabelos como a Rapunzel e morava num castelo de papel'. Esse trecho é da poesia ‘(Des)encantada’, presente em ‘Rio’, meu primeiro livro, publicado pela Editora Raiz. Aquela era eu, uma menina que queria crescer depressa demais para salvar a mãe do alcoolismo. A minha mãe era linda, inteligente, à frente do seu tempo, romântica, fã de Vinicius de Moraes, amiga e generosa. Mas quando bebia se transformava e transformava tudo à sua volta. Ficava agressiva. Uma gota de álcool fazia com que ela virasse outra pessoa.
Ela já era assim desde antes do meu nascimento. Eu, criança, não tinha maturidade para entender que o alcoolismo é uma grave doença. Então, brigava e suplicava para ela parar de beber, porque a amava e não queria perdê-la. Ela chegou a tentar parar com a ajuda dos Alcoólicos Anônimos (AA), pelo qual tenho profunda admiração. No entanto, infelizmente, desistiu, uma, duas, inúmeras vezes. Perdeu a guerra para a bebida em todas elas.
Minha adolescência foi marcada por uma série de constrangimentos e muita vergonha devido aos inúmeros escândalos da minha mãe, presenciados por mim. Deixei muitas vezes de ir às festas da família, de brincar com os primos, de levar amigos em casa... Encontrava acolhimento na casa de amigas confidentes, nas músicas, nos livros e nos diários que escrevia em segredo. Também me martirizava por acreditar que a responsabilidade pelo sofrimento dela era minha. Queria salvá-la, mas a gente não salva ninguém...
Meu pai era apaixonado pela família e passou a vida inteira tentando conciliar o trabalho e as infindáveis demandas que o alcoolismo da minha mãe trazia à dinâmica da casa. Ele se desdobrava para nos sustentar, amenizar as dores e ainda fazer cafuné na hora de dormir. E, mesmo quando a noite anterior era caótica, ele acordava cantando. Era um homem culto, que lia os jornais, de uma ponta a outra, religiosamente, e declamava trechos de livros de Dostoiévski, seu autor preferido.
Minha mãe nunca parou de beber. Aos 64 anos, morreu cinco meses depois de ter sido diagnosticada com um câncer de pulmão (ela também era fumante inveterada). Foi fulminante. Com a sua partida, meu pai entrou numa depressão profunda e, mesmo com o meu apoio e o do meu irmão, ele tentou tirar a vida por três vezes, em vão (graças a Deus). Cinco anos depois da morte da minha mãe, meu pai teve um infarto fulminante, três dias antes de o meu filho nascer, em pleno Dia das Mães. Apesar da tristeza avassaladora, permaneci uma leoa até o nascimento de Benjamim, minha primeira prova de amor.
Conheci o pai do Ben aos 21 anos, no meio da faculdade de Direito. Entre namoro e casamento, ficamos 19 anos juntos. Ele me convenceu de que todas dores e traumas passariam, que construiríamos uma família feliz, com filhos, amigos e parceria. Enfrentou muitas barras ao meu lado durante o namoro, mas, assim que me casei, surpreendi-me. Já na lua de mel, dei-me conta de que éramos completamente diferentes. Foram 9 anos difíceis. Mas tudo tem um sentido e tivemos um filho lindo, o Benjamin, razão da minha vida, reconstrução, coragem e inspiração. Finalmente, quando Ben estava com 2 anos e meio, seis meses antes da pandemia, tomei coragem e pedi o divórcio.
Em fevereiro de 2021, um domingo de sol ameno, quando estava lavando a louça do café da manhã, Ben puxou a barra da minha saia e perguntou: ‘Mamãe, como se cria uma música?’ Respondi, meio desconcertada: ‘Que complicado, Ben! Vou pesquisar’.
Até que um amigo me deu um caminho, falando que música é ‘uma historinha cantada’. Lá fui eu criar uma canção para o meu filho. Como um chamado, a partir daquele momento, as palavras começaram a transbordar e se transformaram organicamente em poesia. Fui guardando tudo no bloco de notas do celular.
Essa dinâmica do bem avançou e foi parar em guardanapos de padaria, espelhos e vidros embaçados e nas redes sociais. Dessa maneira, nasceu o meu primeiro livro de poesias. Foi a maneira, quase inconsciente, que encontrei de ressignificar minhas angústias e dores.
Hooje, aos 44 anos, consigo olhar para a minha história como espectadora, transformá-la em palavras e até rir de episódios dramáticos. Espero que o ‘Rio’ de sorrisos, lágrimas e transformações, que escrevi por meio dos afluentes do meu coração, ajude, de alguma forma, outras pessoas a buscarem suas saídas e o amor incondicional à vida.”
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